A guerra reage ao nada com muitas coisas e
a piedade nos distrai pra que nos sintamos úteis
Inúteis, sobrevivemos da fome de morte
deitamo-nos fora de nós por exaustão
A guerra sacode nossos dejetos e nos renega
lápides; recorda o quão ninguém somos nem
fomos nem hemos de ser — controlados vivos
redesenhados úteis bélicos e sem querer servir servimos
auscultados pela indústria cardiogramáticamente
pulsamos jus às balas evocadas bombas explodidas
e ouro gerado dessa desgraça de sermos em carne
ou ossos o engenho vivo e morto da guerra
* * *
Para José Gil
chegaram as marcas na cara e
correspondeu a mim meu retrato
nele desenhado os versos
do escudo de Aquiles
deixei de ser juventude
meu rosto não é território
é multidão
* * *
Dormem os cumes das montanhas de Álcman
e lá os macacos e saguins; dorme a esfinge
de Gizé as lembranças de paz as mulheres
deprimidas e exaustas seus filhos raquíticos
os homens bêbados de testa nas mesas das
tabernas e as prostitutas entorpecidas das
suas camas insalubres. Dormem os rios em
seu leito, a foz que não desagua, os abissais
nas profundezas, serpentes de todas espécimes
humanas dormem nas árvores que também cochilam
aproveitando o vendo da tarde; dormem como
crianças batedores de panela e dormem também
as crianças, porque essas devem mesmo dormir.
Dorme mais ainda a revolução e dormem todos
os outros à rivotril ou prozac; menos o poeta
* * *
Esta paixão é um jabuti de apartamento
corre quatro cômodos em quarenta dias
fecha o mês ocultado pela samambaia
com saldos de alfaces velhas às patas
* * *
Disseram quando nasci nem chorei
gritei como hiena e pequena
já a postos com escudo e armadura
a me proteger de você à minha frente
cá prostrada de peito pro alto
esqueci o formato das nuvens
ouço dos pássaros as ultimas histórias
débeis sobre dribles em gatos
fui percebida e quase desviei do coice
do céu faustoso mas não foi possível hoje
demente segui com as marcas da pata
celeste na caixa torácica duas ferraduras
do lado esquerdo do peito
* * *
Despertar-te nu horizonte rigidez
pulso vibrante cilindro rosado
sangue nas passagens sementes
explosivas na extremidade, sementes
são seres humanos perigosos
não se sabe o que esperar delas
* * *
Meti a poeta na jaula
como macaca brava de circo
rosnava assustadoramente
faminta e incontornável
poetas devem ser sublimes
não feias, vulgares, mondrongas
poeta é tênue, intocável
não disforme, buguio, cacajao
Vez por outra escapava
pra me encher de culpa pelo poema
que não paga as contas do mercado
a comunista me viu acabrunhada
Reclamou:
— Você é poeta. O demônio tem medo
da poesia!
Taí a função da poeta primata
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Manuella Bezerra de Melo, jornalista nascida em Pernambuco, foi repórter e especializou-se em Literatura Brasileira e Interculturalidade. É poeta, cronista de rede social e autora infanto-juvenil. Quando viveu nas Serras de Córdoba, na Argentina, publicou sua primeira obra, Desanônima (Autografia, 2017). Já em Portugal, publicou Existem Sonhos na Rua Amarela (Multifoco, 2018) e Pés pequenos pra tanto corpo (Urutau, 2019) e participou da antologia Pedaladas Poéticas (Aquarela Brasileira, 2017). Mora em Guimarães e dedica-se a um mestrado em Teoria da Literatura na Uminho.