cinco poemas de Kátia Borges

o gourmet momentâneo

Margaret Atwood parece estar com frio
o modo como aperta o casaco preto na parte da frente
amo seu nariz, seus pequenos olhos azuis
e aquele poema sobre o coração arrancado do peito
que lemos na aula de teoria da lírica
o papel amassado
passando de mão em mão como se fosse o órgão vivo.

a dor fantasma

Tenho as mãos vazias
e horizontes perdidos.
Meu coração vai
onde a vista não alcança.

Meu coração,
treze caravelas,
não descobriu
país algum.

Meus dedos festejam
um braço invisível
e dores fantasmas,
esse vício:
agarrar-se às coisas.

Sinto o vazio espalmado
contra o vento que me cobra
ser possível,
uma pilhéria
de que os livros não dão conta.

teu movimento

Antes que te chame
o pelotão de fuzilamento
repara o pássaro
apara o dia.

Há um olhar que se derrama
lento sobre a vigia
e graciosidade no andar
do carcereiro.

Antes, sim, que chamem
o teu nome, anota
num papel ou na parede
certo verso de cimento.

o amor na gare de Astapovo

O Cristo no quarto
talvez adivinhe que ando triste.
Por educação, não diz.
Apenas espia, expia,
braços abertos em cruz.

As ruas hoje parecem longe,
cada bairro é um país.
E o amor é este trem descarrilado
rumo a Astapovo.

Se perguntarem de mim,
diga que planejo fugas
espetaculares, minta,
invente algo selvagem
que me faça rir.

Andam nuvens pelo céu
sempre em brasa por aqui,
e os dias correm,
despudoradamente.

Ainda ontem, juro, te vi descer
na estação errada e seguir
na direção contrária a mim.

observação da rosa

Há um certificado, dizem, um título, um prêmio,
(algo assim) para quem melhor conseguir
descrever a rosa.

Sua haste, dizem, seu corpo, e tudo aquilo
que a sustenta, pétalas
e espinhos (em botânica, dizem, órgão
axial ou apendicular)

Mas, eis que seu efeito sobre nós
(e já o fez Clarice, não sei se opiáceo)
nos levaria a esquecer o que motiva
a perseguir a forma.

Kátia Borges é autora dos livros De volta à caixa de abelhas (As letras da Bahia, 2002), Uma balada para Janis (P55, 2009), Ticket Zen (Escrituras, 2010), Escorpião Amarelo (P55, 2012), São Selvagem (P55, 2014) e O exercício da distração (Ed. Penalux, 2017). Teve alguns de seus poemas incluídos nas coletâneas Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000 (Ed. Global, 2009), Traversée d’Océans — Voix poétiques de Bretagne et de Bahia (Éditions Lanore, 2012), Autores Baianos, um Panorama (P55, 2013) e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Rewiew, 2013).