na colônia de pescadores
Minha filha achou a coisa
mais nojenta do mundo.
Primeiro, a cabeça cortada;
depois, as vísceras
atropelando-se na saída
do corpo.
Fazia muito calor
e os gatos já haviam recuado
para a sesta.
Só as moscas pousavam
nervosas nos poucos restos,
líquidos, escamas.
Alguém poderia lembrar
a enorme variedade de insetos
e as inúmeras espécies extintas
antes de conhecidas
como se nunca houvessem existido.
Ou então: “áreas menores
abrigam populações menores,
e populações menores são mais
vulneráveis ao acaso”.
Mas ela só perguntava
isto: por que o menino
levantou a camiseta
mostrando as costas cheias
de tatuagens e de pontos
vermelhos
culpa de um enxame
cujo nome não entendemos?
na emergência
“The elevator always seeks out
the floor of the fire
and automatically opens
and won’t shut”
(Anne Sexton)
Você achou que sairia assim?
Às quatro:
dor de barriga
o som dos carros
25 andares
abaixo.
As mandíbulas
nos calcanhares
ao contrário.
Você achou que sairia assim,
como nos filmes de treinamento?
No escorregador inflável
após a pane
sem coisas
sem laços?
Você achou que sairia assim:
seu mundo controlado
reduzido
no quarto de hotel
não a floresta de objetos à deriva
e a porta fechada
pela pressão da água.
Não há nada no imóvel vazio
fora o corpo
incômodo.
na presença de alguém
Ela também tentou suicídio aos oito
ligando a máquina de lavar
como toda criança depois
de se olhar no espelho
e ver a si mesma
olhando-se no espelho.
Ela continuaria provando
maneiras estúpidas
de fazer o mesmo
anos a fio:
mastigando vidro
cortando a pele
imóvel por muito tempo, dias inteiros.
Nada parecido
com a clareza do menino correndo
direto, janela afora.
Cinquenta e três andares
quarenta e nove andares
nesta mesma cidade.
uma anatomia
Dizem que o menino se enforcou com o cinto do pai, na escada da casa, à vista de todos (se quisessem ver). Por que “estranho”? Você também tinha quase sete anos e ganas de chegar ao fim, até o muro onde pregaram uma das pontas da corda de pular, para descansar segura junto à hera. Ninguém a procurava no recreio, mas estavam mais ou menos perto quando você prendeu a ponta solta no pescoço e começou a girar, enrolando a corda comprida como um colar tailandês, daqueles que as meninas pequenas já usam para alongar o corpo. Felizmente ninguém veio, ninguém testemunhou o vexame: parar no meio ao se dar conta, encalacrada, olhos inchados. Você queria era chamar a atenção — como quando entrou na escola e ficou uns meses sem falar; a professora logo viu que estava fazendo tipo, tão sorridente na saída, me contando tudo. A gente tem de sentir o momento, saber quando os filhos estão preparados para a separação. Ele apenas foi adiante, completou a tarefa, traiu o corpo, mas não há culpa. Você, ao contrário, será sempre responsável porque é frágil (olha essa sua mania de antecipar o desastre, fotografar a própria filha de costas para ver melhor o que espreita, o que há em volta). Eu tomaria conta de tudo, de novo (e se possível ele morreria ainda uma segunda vez; então saberíamos ao certo as providências, onde cortar, como descrever), se você deixasse; mas na minha província, onde os mortos dão nome aos cães.
Chantal Castelli nasceu em São Paulo, em 1975. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, é poeta, escritora, tradutora e professora. Teve poemas publicados em diversas revistas e antologias. É autora de Memória Prévia (São Paulo: Com-Arte, 2000) e Os cães de que desistimos (São Paulo: Hedra, 2016) — este último recebeu o patrocínio do programa Petrobrás Cultural.