a fábrica
i.
a fábrica engoliu homens
meu pai meu avô
mastigou direitinho 32 vezes
mais de 30 anos
os restos foram recebidos com festa
em almoços de domingo que não
compreendíamos
ii.
a fábrica engolia pessoas e regurgitava
máquinas pessoas e máquinas até
os homens serem teares mais que homens
operários mais que homens
mais que homens: máquinas.
iii.
nunca entrei nunca deixaram
há boatos de que os fiapos de algodão
formam braços e arrastam os incautos
para o fundo da fábrica
(uma foto do século XIX mostra como
era e como é dentro do prédio
porque lá não tem calendário
relógio ou outono: é o tempo da fábrica)
na fotografia, um homem coberto de penugem
branca. meu pai coberto de penugem branca
nos cabelos loiros esbranquiçados de algodão
e de velhice
iv.
a fábrica engoliu gente até que num arroto
expulsou a todos um a um como cachorros
a reestruturação a reestruturação
a reestruturação da década de noventa.
v.
o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. toda noite, meia-noite, é hora
da janta. na fábrica.
o monstro adormecido não deixa o pai
dormir. o pai — vinte anos separado da
fábrica.
vi.
naquele prédio ao lado tinha uma biblioteca
— a primeira fuga, a primeira brecha
o primeiro pulo sem saber do tamanho do mundo
— eu não tinha tamanho para o desafio
mas hoje me permito e aponto o dedo
e acerto o riso
e grito
eu grito
e a fábrica, deitada, não responde
nem aceita o desafio de medir
qual dos dois
ela e eu
qual dos dois
é mais forte.
* * *
BR-470
i.
uma estrada
não inaugurada
carrega somente
os mortos seus
trabalhadores que
por inobservância das
normas de segurança
vieram a sofrer
acidentes graves
ii.
não há cruzes ou altares
ao longo da via
não há flores
nem pedaços de automóveis
e de gente
iii.
os governos não lamentam
os mortos não havidos
e não fazem projeções
: é serena ainda uma estrada
não inaugurada
iv.
na estrada ativa
há uma placa em que se lê
Estamos há 9 dias
sem vítimas fatais,
numeral fixo
todos os dias
há 9 dias
há um morto preso
a esta placa que não
comemorará aniversário
v.
quando o presidente
vier para inaugurá-la
serão omitidos de seu
discurso os desvios
e a demora
cabe numa estrada
não inaugurada todo
o futuro do agora.
[19/06/2019]
* * *
um homem parado fumando um cigarro
na correria do meio-dia nesta cidade
que é uma ilha em que as pessoas em
que as ilhas um homem parado fumando
um cigarro como se não houvesse pedintes
como se não houvesse tristeza nem céu nublado
nem bolsonaro nem correria nem contas em
atraso, apenas um homem fumando um cigarro.
a mulher parada fumando um cigarro não
vê o homem parado fumando um cigarro,
não o conhece, não o enxerga, não se preocupa
embora se os dois se vissem e se aproximassem
e se abraçassem e se beijassem no meio da via
cigarros acesos beijo de cigarro que bonito seria.
[09/05/2019]
* * *
se ao cheiro de morte acostumam-se
o médico, o veterinário, o socorrista
o açougueiro, o carrasco, o dentista
o enfermeiro, o policial, o legista
o arrumador de cadáveres e a esteticista
o coveiro, o padre, o motorista
as carpideiras e as sopranos solistas
também se acostumam, já sabemos
por que, então, a afirmação diária
(que a indesejada se mantenha distante)
da impossibilidade do costume?
se, mais do que cheirar, ela envolve
abraça e beija como amante antiga
e faz do mau agouro seu perfume.
[26/04/2019]
* * *
i.
não há estatística que demonstre o número
de trabalhadores mortos em testes de submarinos
de guerra tanques de guerra de armas de guerra e suas
relativas munições | enquanto consumidores diretos
e indiretos não chegamos a nos perguntar afinal
quem são os que foram usados de cobaias nos
testes dos referidos
artefatos
o que
nos leva à cruel dúvida de se o número de mortos
em guerras neste mundo não deveria ser multiplicado
por x a fim de alcançarmos a proximidade de um
número crível sobre quantos foram/serão os mortos
até agora nessa nossa rude história da humanidade
claro
sem esquecer
que
uma morte é sempre multiplicável pela quantidade
de dor que causa embora a comoção pública em tempos
de redes sociais nos mostre que a)generaliza-se a comoção
b) dura somente até o próximo momento | no entanto
se lidarmos com a questão dos trabalhadores mortos
e feridos em fábricas de armas em fábricas de mísseis
em fábricas de veículos blindados em fábricas de
fardamento militar talvez nos assustemos com o número
embora o tema não vá lá causar comoção alguma onde já
se viu comover-se com trabalhadores
ii.
(atentemos para o cenário:
para efetuar um disparo de canhão são necessárias
algumas pessoas, entre elas: 1) o engenheiro balístico,
cuja função é calcular o ângulo do tiro; 2) os carregadores de peças
e munição; 3) o oficial, cuja função é gritar FOGO com
entusiasmo e na entonação adequada — diz-se que
o cinema de hollywood ensina melhor do que a própria
guerra mas isso são por enquanto meramente boatos)
iii.
se insistíssemos que não devemos nos lamentar
por mortos em fábricas que produzem maneiras
de morte — coisa que faria sentido numa lógica
reta mas a realidade não anda em linha reta
a realidade é uma bêbada linha bêbada
tentando atravessar a avenida às seis da tarde —
se insistíssemos, retomo, que não devemos
nos preocupar com os trabalhadores das fábricas
de morte e se tampouco nos preocupamos com
os trabalhadores das coisas da vida — a saber
agricultores pecuaristas pescadores e afins
ou mesmo com trabalhadores que envolvem
a vida como alfredo que produziu toalhas de
banho e lençóis durante toda a sua
lembremos então dos trabalhadores chineses
que produzem e modulam as nossas vidas
como um todo embora orientais embora
chineses embora o ocidente embora a distância
e mesmo embora a revolução cultural
iv.
não há estatística que demonstre a quantidade
de mortos nas fábricas de armas de submarinos
de tanques de guerra de armas de fogo de munições
de aviões de helicópteros de cassetetes de coturnos
de armas de choque de facas de canivetes de espadas
de capacetes de miras laser não há estatística que
demonstre quantos são os mortos e isso é um erro
pois é contabilizando perdas que se fecham as torneiras
do desperdício veja só quanto dinheiro seria economizado
se as mortes diminuíssem e se em vez de fabricar armas
os mortos fabricassem casas ou plantassem árvores
que interessante seria que interessante.
Marcelo Labes nasceu em Blumenau-SC, em 1984, e hoje reside na capital. É autor de O filho da empregada (Hemisfério Sul, 2016), Enclave (Editora Patuá, 2018), Paraízo-Paraguay (Caiaponte Edições, 2019), entre outros. Tem poemas publicados em diversas revistas especializadas. Desde 2009 atua junto a escolas públicas onde fala sobre literatura com estudantes e procura demonstrar a importância da leitura e da escrita como forma de atuação na sociedade. Edita a revista eletrônica O poema do poeta, onde publica originais manuscritos, esboços e rabiscos de poetas e ficcionistas. É editor na Caiaponte Edições.