Dizem que de morte os vivos não entendem única experiência não vivida mas para mim foi morte. A Irlanda seria só delicias, tinha apostado minhas fichas todas naquele extasiante pano verde mas ela deu um chute na quimera, não posso disse, vou a Veneza a trabalho, uma semana, professora é assim. Quem sabe te acompanho? pulei inocente na esperança. Nâo, cortou na hora, já combinei com Beth. Eu havia perdido todos os sentidos para crer nessa patranha. Alguém vai à Veneza com a irmã? Um em dez milhões, mas se eu ouvisse pela boca do amor que o vermelho era branco de fato o vermelho é branco-neve, só não vê quem não quer, ah e eu como queria. Evitava amor há muitos anos, é tudo um déjà-vu acaba mal eu dizia, pra que se envolver e no fim nem cumprimentar na rua, eu dizia. Não e não.
Contudo acreditei. Desatinada da silva despida de faro e de ferrão dava a volta ao mundo em termos de fé, nem aos vinte anos fui tão crédula. Bem, motivos não faltavam: alguém com quem sonhara sem saber me veio pronta, tinha tudo para meu espanto e mais uns bônus insuspeitados, ah Veneza era engenhosa. Nova no tipo de vida que era a minha em pouco tempo domou seus horizontes, dando aulas de um conhecimento que eu levara anos destilando. Tudo que fazia cintilava. Sem duvida eu conseguia ler com certa sorte o coração do outro, clima ventos furacões gosta não gosta pimba coisas fáceis. Mas Veneza chegou para moer minha fé e derrubar as cercas. Num sábado que nos tomou oito horas no Messenger comentei onde vamos parar, não vamos respondeu, e não paramos. Cobríamos todas as frentes, incansáveis. Não podia durar tanto alvoroço êxtase tem hora!
A internet me deu Veneza como a um tuaregue uma edelweiss, fiat lux, milagre do site literário. De outro modo continuaria perdida para mim soterrada na cidade gélida. A mente luxuosa me chegou primeiro autodespindo camada após camada até expor seu recôndito ouro. O resto vendeu minha alma contentíssima ao diabo. Lenha labareda allure os insolentes passos de Veneza ressoavam em cada centímetro do chão. Eu? Só queria saber de devorá-la. No fundo de sua alma contudo restava um lado B, poço onde por mais que eu olhasse nada via. Tinha medo dessa fresta em silencio uma babel furiosa indevassável. O que buscava em mim, novas experiências? Um ângulo da vida para entender melhor os alunos diversos? Quisera eu que fosse assim tão fácil. Mesmo seus subterfúgios vinham molhados de uma zona de paixão por mim me confundindo com pistas erradas. Seu mundo era só contradanças, formiga que caminha e retrocede pelo mesmo risco aleatório matando do coração no caso eu. Vinha ficava cinco dias e sumia à distância, sua terra uma barricada contra mim. Faute de mieux a meteorologia me ajudava, saber o clima da cidade dela me tornava parte do que a abraçava no momento (o que fosse preciso pra tocá-la.) Eu ia aos trambolhões por um único caminho ela. Que avançava em todas as direções como cavalo bravo. Veneza não perguntava, concluía, uma horda invisível não lhe dando trégua. Um grande mal-entendido pairava sobre tudo. Na sombra, a engrenagem má consumia nossa cota.
Um dia ela partiu sem que eu nada herdasse alem da dor, ponta de onda rolando até agora. O silêncio faz duas coisas muito bem: zumbe invisível e de seu bojo dispara o que nos mata. Fique um pouco mais comigo Veneza adie minha morte, um ano seis meses aceito qualquer coisa transformo um dia em festa estico o tempo, te cultuo como deusa esculpida na rocha arranco aos cachações a música da língua para te compor epitalâmios, em mim não há outra saga só você. Existe algo lá fora melhor que o nosso beijo?
O tempo é o único sóbrio nessa historia toda. Lúcido assesta seu farol contrário para bem para longe do instante em que chafurdamos como porcos sem rumo, claridade zero. E aos poucos desdobra seu tapete de motivos vários. Quando me perguntam de Veneza eu digo me amou como antes ninguém nunca, não sei talvez sequer nem sei se lembra. Reclama do silêncio mas cortou a trama fazendo de minha vida uma mixórdia. O que fui para ela só Deus sabe – com alguma reserva. Não quero o seu anel não quero um paradigma e sim o teu calor as frases loucas o riso de divindade em férias merecidas.
Não sei se essas palavras chegam até você. Confio-as à pulsação do sangue, ao que vibra calado em ultrassom, ao olhar perdido, à lua repentina. E aos céus estes sim sábios que se roçam ao vento entre as cidades dane-se a distância. I carry your heart with me ainda não tem jeito. E tudo que eu escrever de amor sempre será seu.
Myriam Campello (Rio de Janeiro) é romancista, contista e tradutora brasileira. Publicou Cerimônia da Noite (romance, 1971), vencedor do Prêmio Fernando Chinaglia para romances inéditos, Sortilegiu (romance, 1981), São Sebastião Blues (romance, 1993), Sons e Outros Frutos (contos, 1996), Como Esquecer, anotações quase inglesas (romance, 2003), adaptado para o cinema no filme homônimo dirigido por Malu de Martino, Jogo de Damas (romance, 2010), Adeus a Alexandria (romance, 2014) e Palavras são para comer (contos, 2017), finalista do Premio Rio de Literatura em 2018.