prefácio ou epitáfio
Sempre quis que seus livros tivessem o reconhecimento das frases nas portas de banheiro: que a pessoa terminasse, mas continuasse lendo.
irreversível
Hoje um homem morreu. Atropelado no pé do bairro, ele morreu. 8hs da manhã? Por volta, sim, já são onze e o corpo dele está lá. No chão, o sol queima forte, é de manhã, já é calor. Os comentários correm as ruas, vielas, escadões, botecos: jogo da seleção, bandeirinhas, era caminhoneiro, menino esperto, como foi morrer assim? Poxa… Entregava gás, não, não, ele fazia carreto — foi tomar café do outro lado da avenida, esqueceu de olhar a reversível. Não era filho do Zé? Mais um. Toda semana morre na M’boi Mirim. Toma cuidado, velho, atravessa só no farol, presta atenção. Também, a vida toda os busão só vinha numa direção, agora, nem sei, de manhã é daquele, de tarde de outro, tem motoqueiro — raça ruim — que passa rasgando e nem vê QUE TÁ VERMELHO, PORRA! E cobriram ou nem? Você, viu? Foi feio, né? Arregaçou tudo vermelho? Pintaram sua rua? BRASIL bem grande. IML tinha que tirar isso daí. Vixi, vai demorar. Um homem morreu. Atropelado, foi sim, também, por que não esperou fechar? Desceu correndo, ufa, não é meu marido… parece mesmo, não é, graças a Deus e ao Espirito Santo! Desse jeito aí, as mosca bicheira tudo rodeando, curiosos, espera só cozinhar no asfalto.
são luiz
O estômago doí, esqueceu de comer, só café até de manhã. E aí? Tudo bem? Muita gente hoje aqui. Infelizmente. É… Mano, deixa eu perguntar: teria problema se a gente passar aquele pessoal na frente? Oi, desculpa? A bolacha de maizena salvou a noite, se não só o cafezinho requentando a madrugada não ia dar. Eu perguntei pra passar na frente o lá de fora, o sol está derretendo, pode ser? Ah… entendi, porra, é claro. Não doí tanto, incomoda. Uma azia bem no fundo da garganta, que desce pra barriga. Obrigadão, mano, de verdade, gratidão, mas é que tem gente demais e não tem lugar pra todos, vocês deram sorte! De boa, dá pra segurar um pouco mais, é até melhor, um dos filhos não chegou ainda, talvez, consiga. Obrigado mesmo, vai adiantar o meu lado. Não pega nada, vai tranquilo. Valeu e… desculpa perguntar, mas quem era? Queimação nas entranhas, café maldito e mabel amanhecida, que vida de merda. Minha mãe. Quem? Minha mãe, velho. Caramba, era nova… nem diria que tinha um filho desse tamanho. É. Bom, vou lá avisar o pessoal que já pode enterrar a Dona Francisca, valeu, meus pêsames, garoto. De nada.
[Estes poemas em prosa são de um fascículo chamado Corpo Extranho lançado em 2015 na Cooperifa, em São Paulo. Trata-se do primeiro de uma série de fascículos, que, por sua vez, completaram um projeto chamado 5318 — o número do ônibus do seu bairro — projeto ainda em construção.]
Rafa Ireno é um escritor e crítico da periferia de São Paulo. Neste momento, faz um doutorado em cotutela sobre poesia e política nas obras de Rubem Braga e Jacques Prévert na Universidade de São Paulo e na Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3. Recentemente, publicou de maneira independente o seu segundo fascículo de poemas em prosa chamado Três por Quatro. Desde abril de 2019, contribui com o blog Letras in.verno e re.verso [link] e, não tão amiúde como gostaria, escreve em seu próprio blog [link]. Pode ser encontrado frequentemente no Sarau da Cooperifa ou no e-mail: irenorafa@gmail.com.