cinco poemas inéditos de Heitor Ferraz Mello

nota para um projeto

Nesta tarde fria,
ouvindo no celular
uma leitura
de Chico Alvim
Um nó na garganta
me fala de um país
que
acabou

Aquela voz
parece provir de uma nítida
percepção de que a beleza
é venenosa
Que pode fazer vibrar
os sentidos
Mas pode ao mesmo tempo
nessa informalidade
estropiada da língua
estrangulá-los

Não é mais possível
fazer poesia sem que
o horrível se manifeste
e se projete
num tempo sufocante
e ameace
toda a solaridade
toda a paisagem viva

Sinto a mesma dor
ouvindo “Undiú”
de João Gilberto.

hábitos noturnos

Agora, sim
devo me deitar
Agora, sim
apagar as luzes da casa
A gata continua
em cima da máquina de lavar
na mesma posição
esfíngica e provocativa
À noite
fecho as janelas
para que ela não fuja
e apago o último cigarro
Agora, sim
devo procurar novamente
o sono
que está em cima
da máquina de lavar
na mesma posição da gata
Não há mais nenhuma sombra
Não, minto
Há a sombra da janela da sala
projetada no tapete
pela luz dos postes de rua
Toda sombra
é recolhimento
Também encontro
ainda
este outro feixe
de sombras
em cima
da máquina de lavar.

para os que ainda podem dormir

Não há mais noite
que não seja inventada
O homem que se deita numa cama
inventa sua própria noite
Fala antes de dormir
para que algum planeta disperso
na órbita do quarto
possa ouvi-lo

O discurso solto de quem
está e não está mais
Parece ter aquela autoridade
dos moribundos
dos narradores que escoam

A voz vai se desarticulando
como letras que se embaralham
diante do leitor sonolento

O homem inventa suas noites
suas mortes
para suportar
o peso imenso
do desencontro
com seu corpo.

certas palavras

Às vezes
preciso de uma palavra errada
Ela me indica caminhos
que não estavam
no roteiro dos dias

O sentido da palavra
errada
em outra
mesma língua
pode romper a manhã
em que ansioso
não me punha em pé
mas num estado irrequieto
pondo fogo em pinheirinhos ornamentais
Todos os pinheirinhos ornamentais
de minha cabeça em frangalhos

Só uma palavra errada
poderia me resgatar
de tanto desgaste
Como se o erro
de sentido
tirasse da sombra
como um sol violento
a sombra
do que sou.

em resumo

Também se destrói um país
com palavras
e canetas ordinárias
Também se enterra um sonho
Com a mais ordinária
das falas

Heitor Ferraz Mello nasceu na França, em 1964. É jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela USP. É professor na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Em poesia, publicou, entre outros, Coisas Imediatas (1996-2004), Um a menos (2009) e Meu Semelhante (2016), todos pela Editora 7Letras.