cinco poemas de Tatiana Pequeno

Os três primeiros poemas são inéditos. [N.E.]

abençoados

a primeira vez em que vi uma
mulher nua foi na rua uranos
próximo da casa de minha
amiga letícia cujo nome ela
repetia significava alegria
e a alegria nos anos oitenta
era mais importante que u
ma benção
o borracheiro ficava em
ramos do lado oposto da
linha do trem onde os homens
seguravam mangueiras livre
mente e a primeira mulher
que eu vi nua posava com
seios maiores mais claros
que os meus que sequer e
xistiam sob o sol refletido
no rio faria timbó e sobre o
espelho do meu quarto
mulher adulta cabelos lisos
roberta close diziam
até que um dos homens disse
toco uma todo dia para ela
e todos riram menos eu
que aos sete anos não entendia
a alegria das graxas sobre os
sexos malditos e não entendia o riso
atrapalhado e firme dos homens
mas sabia do enigma que aquela
jovem moça roberta close trazia
porque aquele sorriso litoral
distante naquele corpo de bruxa
era familiar como o meu
& nesta época
os subúrbios preferiam mais livres
a alegria
hoje eles dormem mais silentes
amortecidos pelas explosões
pelas igrejas e pelos saques
mas da roberta close eu guardo
a boca enigmática daquela alegria
que eu também perdi
por ser adulta agora nesta
hora que parece infinita e repleta
desta saudação cheia de infernos
para tantos
todos infelizmente abençoados

sobrenomes

você tinha falado na hipótese
de um ou outro golpe
vindo pelo lado direito e o peri
férico avisando que vinha chum
bo grosso morteiros quedas das
moedas assunto vigoroso para o
nosso cansaço mas
você sabe que sorrir é algo que a
gora parece estranho você sabe
que negar esta volta no tempo é
vexatório você sabe que ficamos
parados e as nossas mãos estão
secas feito o interior do nordeste
você não sabe o que é o interior
do nordeste você só tem essa pele
demaquilada você só sabe sorrir
passeando com sacolas dentro
desta cidade de vidro nome rio sul
você janta e sabe que se quiser
em breve poderá partir

para Cristiana

acordei na madrugada, amor, e havia tiros que circulavam atrás da nossa janela sombreando a mandala da colcha que resolvemos usar como cortina.
faz barulho lá fora e em breve você acorda no sentido santa cruz e eu permaneço aqui, atenta e ouvinte da fisiologia dos gatos
compreendendo a lógica feroz dos
nossos vizinhos e celebrando minhas pequenas vitórias de testemunha
viva do que todos os dias permanece
sendo a vida incompreensível.
já já amanhece, amor, e eu vou
vendo no tempo meu espelho
descobrindo um outro cabelo branco
ou um desgaste obstinado da pintura
perto da parede que há um ano era lisa.
os tiros não param.
não vou mais fazer aquela pergunta
sobre o tempo porque a adriana calcanhotto disse que não interessava
a visão política dos poetas então
eu fico aqui insone neste bairro da zona norte ouvindo rajadas das muitas vidas separadas do morro da outra rua eu penso nas crianças lá em cima no
morro dos macacos eu penso que
a minha profissão é uma utopia
eu penso que gostaria de dividir com você um mundo justo (eu prometi a mim mesma que escreveria este poema sem a palavra mundo ou tempo mas eu falhei, me desculpem os poetas que são expertises em tudo em que sou fraca, desculpem os críticos, as adrianas, amigos ou irmãos feéricos da poesia)
em que todo fim de mês não precisassem existir brigas em função das contas ou que sempre conseguíssemos decorar o que dizer ou fazer para o casal que nos pede dinheiro na entrada do supermercado
(o bebê está sempre com remelas)
enfim, amor, como poderíamos bem respirar
diante de tanta disparidade, como conseguimos comer peixe sabendo que há os tiros e as crianças e o casal
como eu posso dormir se a minha beleza fraqueja diante dessa inaptidão dos poetas?

uma vez eu te disse, amor, tuas mãos são saúde e as
minhas têm uma espécie de maldição
que é dedilhar o caos, saber o relevo e o tamanho da crosta das cascas que é olhar a mandala e só ver os tiros, amor, você e essa palavra que preciso repetir para não adoecer, amor, os tiros, as crianças, teu sono cansado, as fissuras, a tarde imensa da minha solidão, o som dos tiros invadindo a nossa cama , o passado a meu lado, minha memória
nem amanhece e o que há é a guarita do teu sono pesando firme o desejo de outra madrugada com menos tiros tão próximos de nós,
amor, outro tempo, outro mundo,
outra forma de traduzir a falência
que brilha na remela da criança,
vou repetir o vocativo que me
sugeriram retirar da poesia, amor
outro tempo, outro mundo
para nós.

carta para Mariana, depois dos protestos

penso sobre o seu silêncio e escuto agora
uma artilharia pesada de gás e de choques
como se aguardasse o impossível gesto
que você prometeu nunca me direcionar.
guardo a sua face pelo rosto lavado de sal
da última despedida e nada do que fomos nos
quartos onde sistematicamente nos despe
dimos repara os mais de mil quilômetros do
litoral que percorro há meses para chegar
no movimento central das reivindicações e
na marcha correta dos aflitos e dos protestos.
os dias têm sido tentativas ignorantes
de ver como é sagrada a depredação e os
ajustes, mais por você que por mim pois re-
tive da última internação outros monolitos
que não posso e não consigo devolver ou
simplesmente fazer deslizar rápido pelos
néfrons. porque é por meio deles que não
amo e não serei capaz de amar outros senão
vândalos e hereges — tu mesmo esquecida
acenando entre bandeiras e táxis a perda dos
empregos para os quais não se nasce ou sobre
vive. de ti, Mariana, apenas a réstia de imagem
depois da revista da guarda a caminho de uma
filiação médica (ou militar) em Madureira: algo
como uma página escondida sob mãos desfeitas
e desenlaçadas num inverno de muito medo
e combate.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2013.

| do livro Aceno, 2014. |

teoria de poesia

correndo vinha búfala
caminhada em punho
tronco pesado de gado
eu vinha bovina
correndo vinha rinoceronte
pisava forte como arma
até concreto de chão
coagulava e mexia
correndo vinha a galope
na sina de advertir espantalhos
marchando com vontade
a sutileza das vindas
correndo nasci mamute
tronco grande animal
médico para ensinar
subir e descer com leveza
nascendo cresci mamute
pronta para as famílias
no plural
e eis que se espantaram com as minhas entranhas
dei à luz um menino
— elefante extinguido
passado como fóssil
íntimo dos intestinos
mamute, rinoceronte
búfalo ancestral
quando morri
recebi de presente
a pisada de um mamute
fiquei esmagada
na humaneza
preferi ser mesmo animal
agora meu menino se foi
o pai danou-se pela selva
fiquei colecionando presas íntimas
sagradas antropológicas
correndo vigilante
totêmica búfala e tabu

| do livro Onde estão as bombas, 2019. |

Tatiana Pequeno nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Tem três livros publicados: réplica das urtigas (2009), Aceno (2014) e Onde estão as bombas (2019). Trabalha como professora de literatura na Universidade Federal Fluminense, onde coordena grupo de pesquisa sobre a relação entre corpo, gênero, sexualidades e as literaturas de língua portuguesa.