de quando a verdade me levantou do chão, de Roberto Menezes

“Quando o galo cantou eu ainda estava agarrado ao seu pé e à sua mão. Uma unha na nuca, você já maluca de tanta alegria do corpo, da alma e do espírito são.” (Caetano Veloso)

Seria mera formalidade e chegar, sentar e chorar, chorar como um torturador arrependido, depositar aqui um milheiro de flores do jeito que você faria, devoto de frente a um túmulo francês de um poeta romântico genérico. Mera formalidade, documento carimbado e protocolado, com firma reconhecida em cartório, presente com beijinho no pescoço. Não sei o motivo de eu ter vindo aqui, mas digo a você que hoje não chorarei, a gente não vai chorar, não separarei minha dose de água e sal, não transformarei esse dia silencioso, esse dia bom pra andar de bicicleta em volta de lagoas, esse dia não transformarei num malogrado vendaval de angústia, saraivadas de lamentações gratuitas. Deixo esses dias acorrentados às trilhas sonoras dos desamados, chupadores de letras de sambas canções.

Você é tão patético quanto um clipe de caetano em mute.

Olhe nos meus olhos. Na minha maleta não há nada pra te dar a não ser a verdade. Você sabe que sou dado a trazer presentes embrulhados em frases rimadas, com efeito. Trago hoje pontapé, não trivela. Trago pontapés e uma caixa de cupcake. E não diga assim, com essa cara de funcionário da alfândega mal-educado, que eu e minha encomenda chegamos tarde, que já é hora não-útil e a mulher da rua das emoções vadias te espera em casa pro eventual e protocolar boquete. A verdade não tem hora marcada, bate na tua casa, não com a sutileza da sua femme de mauvaise vie. Nunca é tarde pra minha verdade testemunha de jeová. Eu achava que você já sabia disso. Minha verdade não quer saber quando você diz, deitado, na tua conveniente kryptonita: me deixa aqui, não há o que se fazer, tudo está partido, tudo está aos cacos. Minha verdade, de pau duro, é insensível às tuas verdades.

Você é tão patético quanto uma adolescente gótica quando você vem me mostrar essa tua rambôzada escrita com cuspe.

Sai desse chão, prepara um chá pra mim. De chá, a gente é especialista. Pois então. Nem sei a última vez que entrei aqui, sabe. Sabe, tenho saudade daqueles dias de chá de sobriedade. Lembra não? Lembra nada! Só lembra dos chás das cinco da madrugada, o chá que a gente tomava depois de vomitar a bílis. Ninguém, nem eu, nem você, ninguém queria se matar naquela hora de amanhecer. Você jogado no chão só pensava em se levantar, sei bem eu, mas cadê as forças? A gente nem tinha força nem pra levantar o pau, imagina você ficar de pé e atender a porta. Nessa hora nenhum dos presentes tinha o mínimo de coragem de enfiar o pau em buraco nenhum. A gente era a república dos paus moles. Nessa hora, a verdade estava escancarada e a gente de bocas tão iguais escancaradas. A verdade acrobática pulava na sala, meio como um pajé, meio como um obreiro da igreja mundial. A verdade pulava e balançava seu preponderante pau duro. A verdade, que não era nem minha nem tua, tinha um pau de encher bocas, cus, buracos diversos. E a gente ficava em uma paralisia só, sabia que ia morrer. Sabia que após a última gota de bílis, a gente não teria tempo pra fazer nada.

Teve um momento, era pra eu ter anotado a hora, que eu consegui piscar os olhos, mais do que isso, consegui, não sei como, olhar ao redor da sala. Todos, eu, você, o resto do povo, a gente dentro desse último vômito. Realmente não podia fazer nada. Não tem o que fazer quando tudo o que é de ruim foi posto pra fora e a gente vira apenas um saco, um saco de estopa vazio. Meus olhos piscaram, ela chegou na porta, em time-lapse. Era cinza e não tinha vício, vestia um terno. Paletó e calça sem vinco. Seu peitoral se apertava naquele vestiário sóbrio, mas o seu pau, ah!, o seu pau, não tinha amarra que amarrasse aquele pau. E assim, num estalar de dedos, ela estava com a cara na minha cara, espantada, surpresa, não sei, acho que sim. A maldita não esperava que eu pudesse ver a sua fuça. Tanto não esperava, tanto não acreditava que acho que ela achou que aqueles movimentos meus eram espasmos.

A maldita verdade é um bicho sem fé, dos piores incrédulos, daqueles que veem e não creem, não creem, não creem, a maldita verdade só põe fé nela, e na sua verdade.

Pois vejamos, ela continuou, sem eu ali, mas estando ali. Você não acredita, mas quando a verdade baixou as calças percebi que aquele pau duro da verdade realmente poderia machucar alguém. O pau era muito grande, bisonho de grande, do tamanho do meu exagero, do tamanho do meu passamento. Cheirou meu cangote e me desdenhou. O primeiro da madrugada foi você. Coitado de você, ela te currou até quase você virar santo. Você, desacordado, só gemia e gritava mamãe, mamãe, mamãe, mamãezinha você me traumatizou. E a verdade, tome, tome, tome, só te beatificando. Tome, tome, tome. No teu cu a verdade dava o trato. Aí foi no segundo, foi no terceiro, na turma toda. Sem dó, sem piedade. Nem lembro quanto de nós estavam ali. Depois de terminar a sessão, só então voltou em minha direção.

Ai, verdade, quantas vezes a verdade me enrabou? Quantas vezes nessa merda de vida a verdade enrabou a gente? Após aquilo vi que o que eu sabia sobre a verdade não passava de uma ilustração mal feita num livro de história pra boi dormir. Nunca senti, nesses anos todos, quando ela me enrabava, nem você sentiu a maneira pouco delicada com que a verdade fodia.

A verdade te fode todinho. A verdade fode e a gente nem sente, vai pra um buraco no subconsciente, inconsciente, sei lá. O seu pau é suficientemente grande pra entrar, adentrar, alargar, arrombar qualquer buraco. É claro que eu não ia ficar parado esperando a verdade fazer barba, cabelo e bigode comigo. Arregalei ainda mais os olhos e disse não, não, hoje não. Ela não esperava que eu tivesse essa atitude covarde. Covarde não!, de sobrevivência. Fechei o cu e os ouvidos pra verdade. Depois de me lacrar, lacrar todos os meus orifícios possíveis, cerrei os olhos, e gemi, ai meu deus, que seja um sonho, mas não. Eu esperei a porrada, pior das porradas, de uma verdade enfurecida se avermelhando e possessa de raiva, elevando o seu membro contra mim. Esperei, sim, eu estava sem força, sem forças nas pernas. Porém a verdade não fez o que pensei. Recolheu o seu pau, deu uma cheirada insolente na mão melada das mais de mil gozadas da noite. Depois, deu um semi-sorriso e estendeu a mão pra mim. Puta, parecia uma donzelazinha de uma novela das seis, um johnny depp androginado. Ficou então aquele impasse mexicano de dois só. Ela, na dela, sem dizer nada, absolutamente nada, sem fazer discurso verdadeiro. E eu, nem sei o motivo de querer fazer isso, eu queria dar a mão à desgraçada, mas por outro lado morrendo de medo de ser uma cilada, uma armadilha, de ser uma sacanagem dela, pra quando eu me abrisse todo, ela pudesse entrar de jeito. E se ela entrasse, meu amigo, se ela entrasse, faria gato e sapato. Não se pode confiar na verdade, ela é uma cobra vingativa, uma hora te pega de jeito. E uma coisa é ela te pegar de jeito com você inconsciente, outra coisa é de cara limpa e olhos esbugalhados. Esperar aquele ser e seu cacete de metro e meio chegarem pra entrar em você. Eu sabia dos meus riscos quando me decidi.

Pois bem, dei a mão, mais do que isso, desabotoei a calça, fiz o zíper descer o trilho, arranquei a merda do jeans apertado e apresentei o meu cu à verdade, o meu cu que todos nós conhecemos, o meu cu depiladinho mais escancarado do que meus olhos. Vem, verdade! Ela, ligeira, obedecendo unicamente aos instintos, encheu sua boca de saliva e tal qual uma hiena raivosa, deu o bote. Um bote daqueles que pensei, tou fudidinho da silva, um abraço mãe, dê um cheiro em dona margarida e a moça simpática da padaria. Mas não, a desgraçada da verdade só quis de mim a mão. Como assim? O seu bote não chegou a me atingir, nem a cabecinha do seu pau senti. A verdade respirou fundo. Um teletubbie gigantesco e neurótico. Respirou e insistiu, queria que eu levantasse a mão, até um sorrisinho de boca cheia a cretina deu. A verdade respirando fundo parece zeus com asma. Mas ela se controlou, deu um sorrisinho, do tipo, é melhor o senhor, com o bom senso que o senhor tem, erguer logo esse braço, apenas pro seu bem, senhor, apenas. Eu, assim como adão fez ao receber a maçã da serpente, fiz o que ela me pediu. Era a única força que eu tinha. Meus dedos passaram pela altura dos olhos e subiram, até que ela me tocasse.

Quando a verdade me levantou do chão, senti minha alma, personagem que não estava nos créditos, querer ficar. Filha de rapariga de minha alma, não queria sair da lama, do nada tomou vida e parecia ser outra pessoa. Dentro de mim, ela gritava, a lama é boa, amigo, a lama é divina, qué isso irmão, qué isso, não se pode sair da lama assim, esse casamento não pode acabar só porque a meretriz da verdade deu a mão pra você, quem quer saber da verdade, quem quer saber da verdade, vai deixar tua alma na lama?, não se deixa as coisas assim do nada pra trás, bora ficar, pela amor de deus, bora ficar, bora aguentar, já o dia chega, já o dia vem, que mal faz, que mal tem.

Ainda bem que eu já era da verdade e ela sabia o que era melhor pra mim. Como um reacionário governador paulista, ela me arrancou dali, compulsória, a verdade me quebrou todos os tentáculos que me prendiam no mar de bílis e sal. Minha alma travou desarmada, não disse mais nada. Na minha boca, um gosto de coca-zero choca. No ar, um cheiro de esquema novo e nenhum ânimo nas pernas. A verdade me tirou dali, me arrastando mesmo, nem vi o cenário de guerra que deixei pra trás.

Ah, verdade, meu amor, obrigado por me arrancar mesmo que à fórceps daquela metralha toda.

Quando dei por mim, ela me levava já, em plena luz do dia, pelas ruas do centro. A gente vagou por farmácia, igrejas, hospitais, bibliotecas, cabarés, bares, cafés. Lugares que eu nem sabia que existiam. A verdade é bom de papo, mesmo sem abrir a boca. Sabe dizer muito sem falar nada. Boa gente, nem deixou eu pagar o rodízio. No fim da tarde, a gente dividiu um sorvete vendo o sol se pôr, depois ela me levou pro seu apartamento. A verdade nunca leva ninguém lá. São setecentos e vinte e dois degraus pra chegar lá no seu andar. Legal foi ver que ela leva uma vida tranquila, gosta de pipoca com sanzon, lê quadrinhos em árabe e tem a discografia completa de joy division. Ah, e, assim como eu, tem a coleção completa dos poupançudos. Lá pelas tantas, resolvemos puxar uma série pela internet e vimos dois ou três episódios daquela comédia sem graça, daquela atriz que nunca fez sucesso no cinema. Quando dei fé, estava cada um dormindo prum lado. E pela primeira vez eu vi que o pau duro da verdade não estava duro. Sei lá o que ela toma, viagra ou chá de gnose. Eu que já estava calmo e recuperado fiquei confortado com essa não-dureza. Entendi como um voto de confiança da parte dela. Continuei cochilando ao seu lado. Esfriou, ela me levou pro seu quarto. Quase não tinha chão. Era uma cama só, enorme cama num quarto pequeno, sem chão. E eu que quase sempre terminava dormindo jogado no chão. Aqui não se dorme no chão, parecia dizer a verdade. A janela semiaberta e a gente dormiu de conchinha.

Quando o galo cantou eu ainda estava agarrado ao seu pé e à sua mão. Olhei ao redor e me apavorei, sabe, me apavorei. Também lembrei de você jogado no oriente médio dessa casa, você e os outros. Me apavorei de não ter o dia seguinte do caos pra me lamentar, de não poder mais derramar um sobre o outro as mazelas. Lembrei de você, jogado, porco chafurdando na lama.

E a verdade babando no lençol.

Peguei o travesseiro, o de plumas arrancadas de algum cão, e sufoquei a verdade. Ela se debateu, se debateu, se debateu e se fez de morta. Tolo eu, otário filha da puta, a verdade não morre. Antes de fazer qualquer movimento, seu pau endureceu. Medonho membro enrijecido gargalhando em minha direção. A verdade não morre. Não esboçou reação. Ficou só rindo. Tipo dizendo, esse é o teu novo mundo, gosta mais desse ou do outro?, gosta mais disto aqui ou da tua velha lama? Risadinha de bosta. Eu amarrei a verdade na cama, eu torturei a verdade por sete semanas. Tentei matar a verdade de todos os jeitos e maneiras. E nada. Pensei em deixar ela ali pra talvez morrer seca. Mas não. Não podia simplesmente deixar ela ali, e com ela fiquei. Foram sete semanas desaparecidos do mundo, eu e minha verdade. Até que certa manhã, ela começou a encolher, encolher, encolher. Ela e seu pau encolheram até caber na minha mão. Coloquei aquela miniatura numa caixinha bonitinha, daquelas que as universitárias adoram embalar cupcake. A caixa pus na maleta e voltei pra minha vida, minha antiga amarga vida.

Mas num deu. Num deu, cara! Não deu mesmo. Nada entrava, parecia que tinham fechado meu esôfago. Uma vontade mocoronga de não morrer, por infecção ou tiro na têmpora. Cheguei a sentir saudade de pensar como eu pensava, como pensa você, em ter uma tumba onde adoradores buscariam parte desse meu espólio de dor. Espólio de dor! Piada, né? Mas pensei. Nunca tive espólio. Minto. Tenho sim, um novo e caricato espólio. Tá aqui na maleta, uma versão risível da verdade, marmorizada, congelada, não sei o quê. Seria mera formalidade, eu chegar, sentar e chorar, chorar como um torturador arrependido, depositar aqui um milheiro de flores do jeito que você faria, devoto de frente a um túmulo francês de um poeta romântico genérico. No fundo, no fundo seria pra mim, não pra você essas flores.

Roberto Menezes é paraibano. Nasceu em 1978. Professor da Universidade Federal da Paraíba. Faz parte do Clube do Conto da Paraíba. Tem seis livros publicados: Pirilampos Cegos (romance), O Gosto Amargo de Qualquer Coisa (romance), Despoemas (contos), Julho é um bom mês pra morrer (romance), Palavras que devoram lágrimas (romance) e Trago Comigo as Dores de Todos os Homens (novela). Além de Conversa de Jardim, em coautoria com Maria Valéria Rezende.