Já se passavam 28 noites. Seriam 29 dias se o clima nebuloso permitisse que os dias acontecessem. Não havia luz em qualquer ponto que não o sôfrego dançar das chamas que resistiam ao vento. O remelexo do fogo produzia sombras que davam medo, ainda mais medo do que as lendas que assombraram o povoado por gerações e que agora já não assustavam porque os anciões, de seus túmulos, não podiam mais transmitir as histórias para os poucos exemplares da nova geração.
A guerra perdurava décadas. Não havia mais seres vivos que conhecessem tempos de paz e há muito as razões do ódio foram esquecidas. Os jovens já davam sua vida pelo hábito de se morrer sem nem saber por quê; corriam munidos de armas em campos abertos ao encontro da morte sem que jamais lhes houvessem explicado pelo que matavam e por quem morriam.
Diziam os sobreviventes que há 29 dias não se tinha o sol por causa do massacre. Era apenas mais um, mas certamente o mais violento dos últimos tempos, e, na falta de uma esperança de um futuro melhor, diziam que se foram tanta almas que o céu não deu conta e os mortos desprovidos de corpos pairavam no ar cobrindo a luz do sol.
Talvez fizesse sentido. Não era inverno para que, por 29 dias, não se tivesse luz pelas ruas. Ou melhor, pelas ruínas. O pó dos tijolos esfarelados se misturava ao cheiro de pólvora e de putrefação nas ruas onde o luto pesava tanto que o oxigênio quase não tinha espaço de circulação. 29 dias desde que era possível construir um castelo de carne e osso com os filhos de toda a cidade e vilas vizinhas.
Todos pareciam se concentrar em um só lugar para que talvez até os satélites fossem capazes de fotografar uma imensa mancha de sangue em um canto esquecido da Terra. 28 noites que não foram quebradas pelo canto dos pássaros. 28 noites incapazes de amanhecer.
No vilarejo não havia mais crianças para chorar a perda dos pais. Não havia mais pais para colocar crianças no mundo. Não havia mais vida para alimentar aquele intenso e insano ciclo de morte.
No vilarejo sobraram os ratos.
Maya Falks é gaúcha da serra, leonina, canhota e apaixonada por literatura desde o berço. Autora dos livros Depois de Tudo, Versos e Outras Insanidades, Histórias de Minha Morte e Poemas para Ler no Front. Maya é escritora, publicitária e jornalista e acumula mais de 20 prêmios entre contos, crônicas e poesias.