1.
poema é um bicho que devora a vida
e se transforma toda vez que você
tenta guardar num canto só seu numa
caixa de memórias perecíveis ou num
dispositivo de efeitos para bem do espírito
poema não serve de guia nem guru suas
estrias queimam como gelo e nos
lembram que nada pode traduzir o que
as imagens corroem e corrompem as falas
inaudíveis na algazarra de festas e feiras
e festivais o poema nunca está onde o
querem onde explicam onde capturam
porque sua teimosia é seu pulmão e
ele resiste para que seu osso fure mas
não trinque seu grito enlouqueça seu olho
não se canse de ver pelo avesso o que
se sabe como falta ou excesso
2.
a gente aprende a ser ridículo
fingir que sabe o que não
dizer pelos cotovelos o nada
ferir e aprisionar com o desejo
a gente cospe no prato que
não sacia e esquece o sentido
de um pedido ou da despedida
é pouco o que fica guardado
o que a gente consegue trocar
antes que o ridículo nos fira
3.
carece de uma folha
em branco no meio da avenida
como um falso prognóstico
a greve geral
um grave registro por fazer
livros empacotados sem destino
a sonolência do amor interrompido
por um frase torta
essa doida sensação de que tudo desaba
porque você não está por perto
porque a fila não anda
a boca se fecha antes da vírgula
cão que salta sobre a cama
suco de melancia derramado
o universo não conspira, esquece
e a vida espera por relatórios
que o tempo apaga sem dó
um após o outro
os cacos do quadro pop
na angústia da parede
aquele texto do Cortázar
sem pontuação
perdido no redemoinho de mensagens
tão virtuais e quentes
como o hálito no começo da noite
lembrança de aroeira
a cicatriz rosa
no trânsito bloqueado
4.
esse rosto que você toca e
tenta rasgar pelo avesso
que você pega emprestado
e esquece na próxima curva
entre meneios e esgares
que desdenha e insinua
máscara das fases da lua
raízes do gozo e da dor
rabiscadas sutilmente
em rugas inexatas
testemunho viciado
para cativar ou seduzir
como máquina de sombras
um rosto no meio da multidão
descartável ou substituível
simulacro de semblantes
serpentes enredadas no cenho
rosto que fala pelo reflexo
que grita por frestas
e você diz que é mistério
como se o disfarce não fosse
a verdade do rosto
como se bem lá no meio das
incongruências do que o rosto
expressa não coubesse algo
do olhar que você suplica e
e sequestra
5.
bem de perto
as marcas na pele
são mapas de
viagens perdidas
ensaio sem o
canto de sereias
atalhos para
nervos e rastros
da batalha final
do grito original
um corte aberto
na epopeia de
arrepios até a fuga
noutro corpo
Reynaldo Damazio é editor, crítico literário e autor. Formado em Ciências Sociais pela USP. Foi coeditor do jornal Caderno de Leitura, da EdUSP, e colaborador do Guia de Livros da Folha de S.Paulo e das revistas Cult, Arte Brasileiros, Entrelivros, Mente e Cérebro, Nossa América e Literatura: Conhecimento Prático. É coordenador do Centro de Apoio ao Escritor do museu Casa das Rosas — Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura. Autor de Poesia, linguagem (Memorial da América Latina), Nu entre nuvens (Ciência do Acidente), Horas perplexas (Editora 34), Com os dentes na esquina e trilhas, notas & outras tramas (Dobradura Editorial), entre outros. Traduziu Calvina (SM Editora), de Carlo Frabetti.