Acender vela no jantar era tão certo quanto morar na casa dos fundos de favor. Última casa do quintal, de uma irmã da igreja. Sem CEP, sem videocassete e com banheiro fora.
“Tá sem luz, posso acender as velas hoje, mãe?” — dizia quando a noite se apresentava.
“Espera menino, tem que economizar essa vela, tenho que dar banho no seu irmão”.
Ir pra escola, nem de longe me agradava. Brincar no pátio eu gostava, mesmo sozinho. Apanhar dos meninos mais velhos era o problema. A merenda tinha gosto azedo, e salsicha dentro de lata de sardinha não é gostoso.
Minha paixão sempre foi o fogo. Gostava de olhar pra ele. Ficava olhando sua luz e sentindo seu calor até pegar no sono. De alguma forma me acalentava. Mamãe dizia que eu era fogo. Ela cuidava de apagar todas as luzes antes de deitar. E palestrava sobre o perigo. Apagava com os dedos, me ensinou que assoprar velas traz maus agouros. Mãe sempre contava histórias de noite, todas muito parecidas. “Foram felizes para sempre, e acabou”.
Sempre fui o homem da casa, segundo mãe. Mas ela que mandava. Um novo emprego longe do cachoeirinha me deixou responsável pela casa. Já tinha 11 anos.
Irmãzinha da igreja ajudava de dia com alguma comida. De noite ia pro culto. Ficava com o quintal todo pra mim. Já tinha a chave do portão e da casa, receber a da gaveta de mantimentos foi de grande honra e responsabilidade. Eu era mesmo o homem de casa.
“Cuidado com as bolachas, caixas de fósforo e velas, só acende quando escurecer e se precisar, senão, dorme que a mãe já tá chegando, abre só pra pegar açúcar e leite do seu irmão, se acabar”.
Tivemos dias de luz. E dias que a mãe não voltou. Cada chegada da mãe, festa. Seu novo trabalho traria coisas melhores, ela dizia. O armário apresentava sinais disso e quando eu comia um pacote inteiro de bolacha, não tinha bronca.
Mãe chegava muito cansada, quase 23h, quase sempre.
Passei a ser um estranho na escola, eles me chamavam de turista.
“Hoje estamos sem luz” — gritou meu irmão, Pedrinho.
Ficar sem luz era certo. Projeto de redução do governo, alguma coisa a ver com água, não sei bem. Sempre homens pendurados nos fios, mexendo pra lá e pra cá. Em casa tinha relógio, com garrafas de água em cima.
Pela primeira vez eu seria o responsável de vencer a escuridão.
Abri o pacote de velas. Fiquei esperando escurecer. Escurece rápido por aqui, sem horário de verão. Peguei o fósforo e acendi todas, quatro no total. Tão bonita a claridade do quarto e cozinha. E ficou tão quentinho.
Embalei Pedrinho cantando a música da mãe. Ele dormiu. Fui apagando as luzes com os dedos — igual aprendi. Deixei uma. Coloquei do meu lado no chão, deitei pra esperar mãe. Ela não chegava nunca.
Peguei no sono, lembro que o calor aumentou. Parecia que tinha alguém me abraçando. Ouvi berros da rua. Senti gosto de terra.
Última imagem que me lembro foi de cinzas voando e o fogo ao fundo. O fogo ardia tão bonito naquela escuridão.
| conto do livro Outros Cortes (2019). |
Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo, no dia 13 de junho de 1992, dia de Santo Antônio e de Exu. É Autor de VIVAVACA (2017), SP: Sem Patuá (2018) e Outros Cortes (2019). Editor do selo literário Borboleta Azul, agitador cultural e oficineiro de escrita criativa. É poeta nas horas cheias. Instagram: marcelodasilvaantunes_poeta