aquário, de Penélope Martins

1.
era um ferrão de arraia no estômago. meus pulmões paralisados. retomando do princípio, refiz o passo a passo desde que autorizei sua entrada. não sou o tipo de pessoa que se importa com datas e isso pode parecer uma desqualificação sumária dos meus sentimentos. imagino, no entanto, que você veio me buscar numa quarta-feira. a honestidade do seu convite fez com que eu deixasse de fingir o que eu não era. o que me causa espanto até agora é como vínhamos evitando esse confronto de apaziguadas verdades. lembro como agora, sua mão sobre a minha impedindo que eu desfizesse o movimento. eu disse “tamborilar é verbo substantivo, um sobressalto quase doloroso”. seus olhos sinalizaram perplexidade e deslumbre. eu repetia repetia repetia na quietude da mesa. veio a voz ordenando: “fique assim”. a fotografia é menor do que a memória. ainda há tristeza nos olhos, mas só podemos rever os dedos semi erguidos e um vestido admirável.

2.
quando R. me tocou a primeira vez, não houve nenhuma timidez de minha parte. aquilo parecia natural como tomar banho ou ir à feira. R. tinha um cheiro adocicado na pele, mas nada comparado às essências florais que me enjoam. era um cheiro de mato, óleo de madeira, visgo de peixe. era ela no meu ouvido em gemidos inocentes. Não havia em suas palavras a presença de uma memória que a pudesse excitar. Eu me excitava no total desmemoriamento dela, suas mãos pequenas que tentavam em vão apanhar o meu corpo. a inteireza com R. fez com que eu me esquecesse do que ela poderia esperar de mim. devolvi uma curiosidade mesmo infantil. ela segurou minha mão, colocou sobre o seu sexo. deslizando meus dedos para dentro dela eu fixei seu perfume. não são poucas as vezes que fecho os olhos e escuto os gemidinhos fracos repetidos repetidos repetidos mantra.

3.
naquela paisagem milimetricamente fria, uma onda de arrependimento nos abateu. você tentou disfarçar pedindo que eu começasse uma leitura. vi como endurecemos dos calcanhares aos ombros. busquei açúcares, sua voz encarnou. “coma chocolates, pequena suja”. a embalagem se rompeu. simulamos recato. você abriu uma garrafa. o açúcar no álcool embebeu palavras ridículas. “quando foi que começamos?”, “aquela dose de conhaque a mais e eu soltando bobagens, lembra?”, “poderíamos ter evitado?”, “ainda não há o acontecido.”, “eu voltei ao mesmo ponto porque senti algo mal resolvido.”, “sinto que podemos nos afogar nisso.”, “talvez seja exagero de precaução.”, “é só tirar a prova de que isso não é nada significativo.”, “devemos ter mais da prática do que da teoria.”, “na pior das hipóteses, poderemos rir.”, “lembra a fotografia?”, “ como se fosse agora.”, “já me faz falta aquele vestido branco.”, “imagino você nua, um vestido branco no sol.”, “quando foi que você me percebeu?”, “quando foi que você me percebeu?”, “eu gostaria de estar na biblioteca.”, “seríamos dispersos na biblioteca.”, “estou tonta.”, “deite-se um pouco.”, “eu não vou conseguir evitar que aconteça.”, “não se preocupe, somos dois peixes no aquário, nada mais do que isso…”.

4.
uma vez R. me convidou para uma festa. eu confiava plenamente em R., embora soubesse que ela precisava de alguma dose de cicuta para sobreviver. R. foi molestada pelo pai. isso poderia explicar sua fixação em dominar o medo. cheguei no endereço vestindo alguma coisa muito séria. R. estava meio alta. ao fundo da sala, a janela de vidro substituía uma parede. eu sempre tive pavor de altura. as luzinhas vertiginosas desenhando um mapa. fiquei parada no centro da sala. aquele medo de altura. aquele medo de ser dominada pelo medo. R. se estirou sobre um sofá. sugeriu que eu relaxasse. um sujeito passou a mão na minha cintura. por um momento eu pensei que seguiríamos no inevitável. eram dois homens, R. e eu. a plateia esperando, o foco da pergunta repetida repetida repetida sobre mim. R. poderia ter me avisado. era uma questão de sobrevivência. R. no sofá já beijava um cara de cabelos longos, enfiava os dedos por trás de sua nuca. transfigurei ao retomar a memória, os dedos de R. deslizando entre minhas pernas. o homem de olhos azuis disse que eu deveria beber algo. não fosse o fascínio que R. exercia sobre mim eu jamais entraria naquele apartamento. apanhei a bolsa. abri a porta, entrei no elevador calada como um coral pálido. corais respiram? os olhos azuis me seguiram até o carro afirmando sorriso nervoso de caninos pontiagudos. entrei no carro. tranquei e não pude evitar o alívio olhando o homem pelo retrovisor. parti para nunca mais voltar a ver R. vez em quando sonho seu corpo envolto por almofadas e ácidos.

5.
sou uma interiorana convencional. sei que isso não combina com o fato de acordar nua numa cama cujos lençóis não são os meus. a assepsia me obriga que eu pense na lista de pessoas que se deitaram sobre esses lençóis. pessoas cujo espírito eu gostaria de manter distância. cabeças engorduradas, silicones, saliva, suor, porra. repetição de movimentos daqueles desconhecidos dentro da minha cabeça. nauseante ser eu. retomo dignidade em poema arrogante. desenho a palavra. atinjo seus olhos. amanheço onda. bato sobre seu peito repetidas repetidas repetidas vezes. os lençóis brancos, a espuma do mar ainda que houvessem vestígios. “calma, dois peixes no aquário.” “amor é tempo relativo.” e tantas outras coisas que eu posso intuir de sua boca sobre a angústia de não ser nada. filtro inteligível que me apaixona. a lista de títulos enfileirados. antes era o medo de saber você, depois, o medo de que me deixasse ali sobre a espuma de algodão, nosso aquário redondinho, pedras brancas. para se esconder do fato. três fios de plástico-planta para dizer “esta é sua casa”. a culpa que eu carrego é por vezes ter sido distraída com a vida. deixei a janela aberta. tocava diamante verdadeiro na vitrola, disso eu posso afirmar como se fosse agora. alcancei a cena a tempo de ver o imenso gato partindo entre as grades. o corpo frágil escamado entre caninos pontiagudos. três filetes de plástico no chão e aquelas pedras entre cacos de vidro. o esconderijo não serviu para nada.

Penélope Martins (Mogi das Cruzes, 1973) é escritora, narradora de histórias e articuladora em projetos de fomento da palavra escrita e falada. Pós-graduada em Direitos Humanos pela PUC-Campinas, dedica-se à formação de novos leitores desde 2006, produzindo conteúdo para encontros presenciais e plataformas digitais. Colabora com a articulação de reflexões sobre a leitura com a Editora do Brasil e outras instituições. Participou de coletivos de mulheres com poesia autoral e faz a curadoria do projeto Mulheres que Leem Mulheres, com ações em diversas instituições culturais como o Sesc. Entre suas obras publicadas estão Minha vida não é cor-de-rosa (2018) e Que amores de sons! (2018), ambos pela Editora do Brasil, Poemas do jardim (2013), Editora Cortez, Quintalzinho (2014), Editora Bolacha Maria, e As aventuras de Pinóquio (2018), Panda Books. Integrou a antologia Sete, de poetas contemporâneas, organizada pela Editora Essencial, e é autora do livro de poesia Que culpa é essa? (2018), pela Editora Patuá.