outro poeta
O poeta sempre é outro
não esse que se propõe.
Não essa fissura aberta
no intermeio do verso,
não esse suposto vago.
O poeta é outro, sempre outro.
À parte da teogonia de Hesíodo,
só essa camada de fibras e folhas,
só um ser assim sem as premissas,
o poeta não é esse suposto e visto.
O poeta é outro, sempre novo.
É sempre esboço, tem de ser,
sempre garatuja que se mostra,
busca que se deixa exposta,
desencontro, aniquilamento.
O poeta não é todo sentimento,
às vezes ele é régua e compasso,
às vezes é aço, ferro e cimento,
pátio vazio, concreto em branco.
O poeta é outro, sempre torto.
Viés de caminho, voz de dentro,
oblíquo, adunco, gauche, penso.
A dissidência, a vida mundo, vida
poesia nos pedaços desse tempo.
outra balada do mangue
Eu também fui ao mangue,
não aquele
do passado dos passados,
mas outro,
mais possível, mais presente.
Um mangue dos meus dias,
das minhas horas estranhas,
das horas moucas,
as moças vencidas,
derrubadas à noite.
Beijei bocas frias,
abracei vontades.
Vi os olhos assustados e os cílios,
longos cílios postiços encarnados
das moças bem moças,
nos quintais da colônia.
Eu vi suas carnes, vi seus corpos,
vi suas infâncias e vi seus sonhos.
Tudo vibrava de um azul noturno,
um frio de vento sobre o concreto,
um frio de dor, uma dor ventania.
Eu também fui ao mangue,
e vi o dia seguinte aparecer
vencido de álcool e alcaloide
enquanto a luz varria a noite.
No alto,
lá no fio,
pousa uma última estrela,
sozinha.
artigo 149 do Código Penal
A sombra de um homem,
seu trabalho. Sua sombra
projetada oblíqua no chão.
Um sol torrando tudo,
olhos tão horizontais
que a vista anula a vida.
A vida anulada pelo sol,
o sol e as suas sombras,
sobras da vida anulada.
Seus olhos, sem visão,
veem um risco de luz,
um fio de vida oblíqua.
O sol em seus olhos,
a vida em sua sombra,
a cegueira do trabalho.
A sombra de um homem,
com sua visão enviesada,
Já não vê sua escravidão.
André Merez cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós-graduação defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. Autor dos livros Vez do Inverso (Ed. Patuá, 2017) e Perfeição Acidental (inédito).