o homem distraído, de Sara Albuquerque

O homem distraído não mexera nem um bocadinho de cílio quando o despertador do celular tocou a melodia d’O menino da porteira, no volume máximo, por três vezes seguidas, a cada oito minutos de cochilo — cochilos meus, diga-se —, tampouco acordou depois que me levantei, dobrei o lençol, tomei o comprimido de anticoncepcional, catei as notas fiscais, os cartões de visita, as bulas de remédio, os panfletos de propaganda, os lenços com catarro e os papeis de chiclete, perdidos no chão ou amontoados no criado-mudo, separei uma a uma das peças de roupa — também dispostas aleatoriamente sobre o piso —, decidindo pelo olfato o que iria para o cesto e o que ainda parecia limpo, e me retirei do quarto levando comigo os copos, xícaras, pratos e depósitos de biscoito, utilizados nas noites passada e anteriores.

Na cozinha, embora o resto da pia estivesse um brinco, no canto à esquerda, ainda esperava para ser lavado o recipiente de geleia de frutas vermelhas, com água até a borda para amolecer os resquícios do produto — o homem distraído deve tê-lo visto por ali e pensou ora, é a minha vez de lavar os pratos, mas, vejamos, a Fulana — no caso, a Fulana era eu — tem mania de reaproveitar as coisas, ela provavelmente vai usar este vidro para colocar café ou nozes, então, vou deixá-lo por aqui, intocável, intacto. Porém, o homem distraído pode não ter chegado a refletir sobre isso, muito menos nessa ordem. Sejamos justas: é possível que o homem distraído nem sequer tenha notado a presença do recipiente de geleia de frutas vermelhas e o mesmo pode ter acontecido, nas semanas antecedentes, quando o deixou vazio na porta da geladeira, junto às garrafas secas de água mineral e o pacote de salgadinho fechado com o pregador, não tendo quase nada dentro, exceto por umas migalhas que poucos se dão ao trabalho de comer.

Igualmente, não se incomodou o homem distraído em trocar a sacola da lixeira no banheiro, ainda que nela não houvesse mais nenhum espaço para maço de papéis, sendo a solução empilhá-los num montinho ao lado, por cima dos azulejos, a um palmo de tocar nas toalhas de banho penduradas no cabide, as quais eu costumava substituir, pelo menos, uma vez na semana, mas isso também o homem distraído não devia ter percebido, pois se tratara de detalhe diminuto e ele apenas me gritava do chuveiro, amor, me dá aí uma toalha, e então eu lhe entregava uma daquelas, recém-passada e impregnada com cheiro de amaciante, ou o de jasmins, ou o de camomila, dado que escolhi mudar a marca após alguns meses, mas, uma pena, meu deus, sabemos que o homem distraído é um homem distraído, de modo que ele nem teve a oportunidade de opinar sobre qual das fragrâncias iria preferir.

O homem distraído também não viu que costurei suas bermudas rasgadas, ou que passei o aspirador de pó em toda a casa, ou que mudei a cama de lugar, ou que tirei as roupas do varal, ou que eliminei o mofo das paredes, ou que consertei o trinco da janela, ou que encerei seus sapatos de couro, ou que ajeitei os livros nas prateleiras — três, cinco, sete vezes num mesmo mês —, ou que fui ao supermercado e escolhi os produtos e conferi as suas validades e os organizei no carrinho e os passei, um por um, no caixa, e subi com eles três lances de escada e os retirei das sacolas e os dispus nas prateleiras da despensa e guardei todas as sacolas e higienizei as frutas e as hortaliças e só então preparei o almoço que o homem distraído comeu, enquanto conferia as redes sociais, pois o homem distraído estava tão devastado e cansado da sua rotina recheada de compromissos inadiáveis, que sua atenção não tinha intenções de se voltar para afazeres desimportantes como os meus.

Foi, por isso, deveras inesperada a surpresa que sofreu o homem distraído quando cortaram a água e a energia da sua casa e ele não sabia como proceder ou a quem recorrer, procurando no Google o telefone das empresas responsáveis, o qual discou, e esperou na linha durante quarenta e sete minutos, pois sua ligação era muito importante para elas, e então foi atendido por uma voz simpática informando-lhe que as contas se encontravam pendentes de pagamento faziam três meses, e ele argumentou que aquilo era um despautério, mas que coisa sem sentido, a Fulana não esqueceria de pagar as contas, como assim, e então o homem distraído percebeu que talvez não tivesse me visto naquela manhã, talvez não tivesse me visto havia uma semana, talvez não tivesse me visto já fazia um mês, mandando-me uma mensagem contando toda esta história de perspicaz descoberta, cuja leitura só realizei alguns dias depois, porque, desta vez, quem estava distraída era eu.

Sara Albuquerque é maceioense e nasceu em 1990. Mestra em Escrita Criativa (PUC-RS). Publicou os seguintes livros de literatura infantil: O segredo do rio mundaú, O embrulho misterioso de Nina, e Ei, você viu Luizinho?, todos pela Iogram. No gênero poesia, tem publicados Sete centímetros de língua (Ed. Patuá) e Giz morrendo (Iogram).