REGNUM IRAE
faz uma lua sanguínea lá fora
o vento morno lambe a figueira
desaba um figo e engole o agora
último fio da imensa noite inteira
o sol, embriagado de tanto outrora,
chega vomitando pelas calçadas
os primeiros pedaços da aurora
JUGULAR
o gato afia as espadas de samurai
em cada uma de suas patas
nada escapa de tal arte atroz:
da jugular da tarde
salta um sangue viscoso
para dentro da noite veloz
QUANTO,
entre noites
melancólicas,
ruas sem saída,
dia após dia
cultivando a ferida
aberta,
custou-me,
nuvens
perdidas,
passeios
só,
suor a contragosto,
frio,
no fundo do poço,
raiva cobrindo
o corpo
todo,
contas a pagar,
falta de ar,
febre amarela,
febre do rato,
tifoide,
deixando de lado
o amor
(sopro
cosmo
humano)
disenteria,
erros calculados,
a poesia?
AUTOBIOGRAFIA
Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question.
Charles Baudelaire
Paranapiacaba. Avenida Fox. Perto da meia-noite, quatro caçadores de recompensa desembarcam de um carro preto, que parara dentro do silêncio noturno da Vila Inglesa. O frio é de quebrar a caveira. Um disse: Deus — outro: vida — outro: êxtase — o último: caos. Um trazia, como oferenda à noite imensa, uma garrafa de conhaque — outro, quatro báuras — o terceiro, alguns poemas — o último, a sede de todos os outros. Apenas três viam o pequeno menino de meias azuis que os observava sentado no capô do carro, segurando Mjolnir. Apenas um via a gravura Die Schaffendem, de Max Kaus, no poste de madeira à esquerda, emoldurada por setenta & sete bruxas. Dois viam um menino, não no cara do carro, mas equilibrando-se no meio-fio, & cantando baixinho uma velha canção de Alice Cooper. Ninguém via a estrela ao fundo, apagando em si o sono da eternidade em alguns segundos. Os quatro magos vagabundos continuaram a andar & voltaram a ser os quatro caçadores de recompensa. Um deles, após jogar um dente de latão sobre o telhado de uma casa abandonada onde se escutava risadas de crianças, disse ao outro: sou o único homem a bordo do meu barco. Continuaram palmilhando vagamente, enquanto a voz de Chet Baker, guardada no tempo, se misturava ao som de seus sapatos, furados & sujos. Que recompensa era essa? Ao passarem perto de uma velha & grande coruja pousada numa caixa de correios, um deles se assombrou. O que vinha mais atrás disse: Sabe o que Philippe Beck diria, ao observar essa cena, meu camarada? Após a negativa do amigo, completou: O gosto pelo espanto não é suficiente. Outro, bolando uma ode como João Cabral a uma antiode, olhou & riu (a primeira recompensa). O seguinte, capote preto & longas tranças, um rasgo na calça à altura do joelho direito, observava Andrômeda no reflexo de uma lagoa imaginária & sabia que todas as galáxias não pesam mais que as mãos de uma criança. No norte aquele que, bêbado como uma capivara, falava de poesia (outra recompensa). Caminhavam & imaginavam florestas azuis armadas com mármore, jaspe & ágata. Caminhavam. A máquina do absurdo se abriu & ela era um mundo moderato & cantabile. Organizaram um mantra (burning bright burning bright burning bright burning bright) àquela majestosa & desvairada delícia face de mistérios — in the forest of the night. Abriu-se pacífica & pura, convidando-os à contradança como antídoto aos mesmos sem roteiros tristes périplos. Apliquem-se à esfera perdida da natureza mística das coisas, disse-lhes, mas canto algum, vaticínio ou verso vicinal atestasse que alguém de Marte ou Roma ali se fizesse trunfo na noite de bruma. O que procuram em vocês ou fora & jamais se mostrou, disse a fabularia noturna, educa os cincos sentidos com sexto, ausculta, carbura: essa riqueza hermética, esse total êxtase da vida, abram as portas da percepção & dividam-na. Então, como se outros espíritos, não os que lhes habitavam a carcaça mal lavrada, transformassem suas caixas cranianas em pinturas de Monet, onde cada flor abraçasse & repelisse; como se um organista tocasse guarânias numa sacristia & se chamasse José Oiticica & vestisse uma camiseta onde Jesus Cristo joga truco com Mallarmé, os visse de longe & viesse correndo ao encontro deles. & chegasse suado como um frade bêbado. Sorrisse, desapertasse sua gravata que era uma floresta de signos & dissesse: Música, amigos? Todos então mobiliaram o pensamento com tal oferta &, a máquina do absurdo guardada, se foi maravilhosamente recompondo & as mãos do mundo, antes pensas, jogavam, à vista vasta, fliperama de estrelas. Após tal partida, um deles, uma espécie de Théophile Gautier italiano, falava de um poema que estava escrevendo — sobre sombras & plátanos nas pernas de uma garota. O outro falava com seu amigo imaginário. Uma nave extraterrena pairava sobre a vila — os relâmpagos tentavam iluminá-la com seus braços de fogo, sem sucesso. Um, mais quieto, queria comer pastel de queijo, mas não havia, àquela hora, nenhum bar aberto. Todos slow boat to China. Quando um deles mostrou ao seu amigo imaginário as casas geminadas mais ao fundo. & estendeu aos outros três. Olhem mais a fundo, onde nada pode se ver! Que ruínas são estas? É uma vida esquecida? A lua se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, & branqueia os pardieiros escuros do convento. Não mora ali ninguém? Eu tinha desejo de correr aquela solidão. A imagem perfeita do mundo espocava aqui & ali, dentre as árvores, as construções, as ruas, a sintaxe, os fantasmas, a noite imensa. Deram aos seus pés o privilégio de tomar lições de tempo do chão. Viram o cantor das ruas, doente, agachado em frente ao Antigo Mercado, segurando seu próprio coração. & lhe deram um pedaço do bolo que traziam — um bolo feito de meses de abril, versos de Shelley, licor de anis, névoa da estação, alguns malabarismos de saltimbancos & água de riachos envelhecidos. No que o cantor das ruas respondeu: Eu vi coisas que vocês não acreditariam. Naves de guerra em chamas à borda de Orion. Via brilhar a luz do farol no escuro, no portão de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas na chuva. Com a mão esquerda cheia de sangue, apontou para uma inscrição minúscula no muro de uma casa do outro lado da rua. Com uma lupa, um dos caçadores de recompensa leu em voz alta para os outros: Há algo dentro de mim que não se mostra, & o que aqui aparece é apenas a roupa do infortúnio. Continuaram a caminhada, a busca, então o Gautier italiano disse, depois de despejar na noite fria uma quente baforada de fumaça, que há mais poesia nestes paralelepípedos que em todas as livrarias do mundo juntas. Era uma ação entre amigos, lisonjear o delírio & ajeitar a alma na carcaça. A grande sinfonia da viagem alargava sua cátedra. Uma palavra tatuada na língua: im platt — um enigma guardado dentro da morte que chora sobre as flores decompostas & passa o dia inteiro no cinema quando morre uma criança. Ao chegar à ponte que liga as duas metades da vila inglesa, pararam. Abriram a garrafa de conhaque de gengibre & acenderam um paião. O mais louco de todos, que queria ler & se embriagar mais ainda, pediu ao mais triste & estranho que lesse o poema que trouxe — & este recusou, pois estava em Marrakesh, observando Kenneth Rexroth disputar uma partida de sinuca com Carlito Azevedo na casa de um velho poeta argentino que jamais publicara livro algum & foi para o Marrocos imediatamente após o golpe militar de 24 de março de 1976. Então, pegou o papel dobrado & passou adiante, pedindo que passassem, em contrapartida, a bola. O poema falava sobre silêncio & dicionários, chuva, biblioteca, canção & cartas não escritas. Ouviram o Pentagram executando “Forever My Queen” — & há sinos sangrentos nos ouvidos do poeta que vagueia num barco & diz que a lua é um “globo de louça”, de um poeta que escreveu os sonhos todos em Mauá. Os membros da tripulação andam de um lado para outro como fantasmas de séculos extintos — diz Edgar Allan Poe, enquanto acende uma labareda & toda a fumaça verde do mundo invade os pulmões dos caçadores de recompensa. Lembram-se do Gastão, o primo do Donald? Com tamanha sorte, encontraria, sem dúvida, o que tanto almejamos — talvez num soluço, talvez num tombaço — disse um deles, bem baixinho. O outro então respondeu: Antigamente, acreditava que se uma pessoa morria a gente poderia colocá-la embaixo do chuveiro quente, bem quente, & esperar que a água lhe esquentasse & amolecesse a carne & lhe desse novamente a vida. Mas depois, tentando, vi que isso não acontece. Eles apenas ficam lá, quietos. Chorando a nossa lágrima. O último corvo come carniça sobre as jurubebas. Os nuncamais da parcial matemática buscam o oráculo num susto de chuva. And The Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting. Amamos o deserto, os pomares abrasados, as lojas decadentes, os bares de esquina, as bebidas quentes. Nos arrastávamos pelos becos fedorentos &, de olhos fechados, nos oferecíamos o sol, de fogo, ao deus de fogo. Talvez a recompensa fosse mesmo abrir a vida aos sentidos — como aos livros, na sala de leitura do inferno.
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 8 de junho de 1973. É poeta, editor e professor. Vive na cidade de São Paulo com Natália Agra. Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013), Equatorial (Tinta-da-China, 2014) e Nominata morfina (Córrego/Corsário-Satã/Pitomba, 2014). Fliperama, seu próximo livro, será publicado pela editora Corsário-Satã no segundo semestre deste ano.