reforma, de Tiago Germano

Meu avô costumava dizer que ter saúde era ter capacidade para trabalhar. Era o mote que repetia quando caiu do telhado e como que por milagre se safou, sem fraturar nenhum osso. Tinha setenta e nove anos e tentava consertar uma goteira da sala. Sentiu os pingos escorrerem pela aba do boné, assim que parou para assistir ao jornal. Todas as noites, por uma hora ou pelo quanto durassem as notícias, se espichava em sua espreguiçadeira para acompanhá-las. Deixava suas costas se afundarem no tecido da cadeira e colava os joelhos no peito, agachando-se com os pés apoiados na armação. Os braços envolviam as canelas, finas como as de um sabiá. Nas noites de frio, se enrolava numa manta e ficava ali todo embrulhadinho, parecendo o fantasma de uma criança. Nós comíamos na mesa enquanto ele jantava naquela posição, que não parecia muito confortável para alguém da sua idade. Ríamos constrangidos quando ele peidava e soltava um aboio para disfarçar o barulho. “Velho frouxo”, resmungava minha avó. Ele levantava para deixar o prato na cozinha, se agachava mais três vezes e dizia com orgulho: “Pelos menos minhas juntas são melhores que as suas”.

Depois do acidente, ficamos de olho nele. O velho subiu ao telhado outra vez, com a ajuda de uma escada que ele mesmo construiu e escondia no quintal, entre galhos e pedaços de madeira. Desta vez, manteve o equilíbrio e caminhou até a casa vizinha, que era sua mas que estava alugada há meses. Seu objetivo era destelhar o teto e intimidar o inquilino, que segundo ele atrasara o pagamento do aluguel. Antes disso, já havia tirado a porta, cuja chave ainda mantinha guardada. Por sorte, não choveu. Os móveis do inquilino não foram roubados e o caso não foi parar na delegacia.

Mais ou menos por essa época, começou a nutrir um ciúme insano de minha avó. Ela ia com frequência à igreja e não aguentava mais as bravatas do velho, que passara a estranhar sua ausência e desconfiar de suas saídas. A gota d’água foi quando minha avó voltou para casa e constatou que meu avô havia mudado a fechadura. “Menos mal”, pensou. “Pelo menos ele não tirou as telhas.” Mas não conseguiu manter o humor quando meu avô passou a gritar seus impropérios da janela e a insinuar que ela não estava indo à missa coisíssima nenhuma, ao menos não para ouvir o que o padre tinha a dizer. Mudou-se para a casa de uma das filhas e jurou que, enquanto vivesse, jamais colocaria os pés naquela casa.

Passaram anos sem se ver. Anos em que meu avô se distraiu assistindo sozinho ao jornal e trabalhando em sucessivas reformas na casa. Na última, que começou depois que o inquilino enfim quitou suas dívidas e se mudou, decidiu derrubar a parede do banheiro que era usado pela minha avó e incorporá-lo à casa vizinha. Concluído o projeto, não conseguiu voltar a alugar a casa. Todos que a visitavam reclamavam do banheiro cuja entrada dava direto no box, bem embaixo do chuveiro. Meu avô sentava-se na tampa do vaso, cruzava as pernas, olhava para a porta e não conseguia entender o problema.

Um dia viajou para o Sertão e, como sempre fazia, voltou com o carro carregado de frutas. Visitava cada uma das filhas, e a cada uma presenteava com um tacho. Nesta altura minha avó já morava sozinha e, numa passada por sua casa, alguém descobriu um tacho dessas frutas escondido na cozinha, abrindo a cortina do armário de panelas. Nenhuma das filhas havia levado as frutas para lá. Desconfiamos assim que ela também podia ter recebido a visita de meu avô. Que eles talvez estivessem se reaproximando, sem revelar nada a ninguém.

Minha avó cumpriu o prometido e jamais pôs os pés de volta na casa do meu avô. Na última noite antes de ele ser transferido para o hospital, recebemos uma ligação muito estranha da parte dela, preocupada. Meu avô havia batido em sua porta e pedido para dormir lá. Dizia que não conseguia pregar os olhos com a casa cheia de mortos. Fomos até lá no outro dia e o descobrimos quieto na espreguiçadeira, um prato vazio em cima da mesa e a televisão ligada no mudo, fora do horário do jornal.

No leito, antes de morrer, suas pernas se dobravam naquela mesma posição e era impossível ver os seus cambitos, cobertos com a manta do hospital. Parecia ainda o fantasma de um menino, embora tivessem tirado o seu boné e seu fino topete insistisse em se erguer orgulhoso, mantendo-se sempre de pé.

Ajudei-o duas vezes a ir ao banheiro. Nas duas, agradeci imensamente o fato de a porta dar direto no vaso e não no box.

Tiago Germano é autor do romance A Mulher Faminta (Ed. Moinhos, 2018) e do livro de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicado ao Prêmio Jabuti.