três poemas de Luiz Antônio Gusmão

antiode à via estrutural

df-095 estrada parque ceilândia vulgo via estrutural

foi-se o parque, ficou a estrada, mas
não te cansas de nos passar na cara
a verdade das tuas placas
soberanas destas faixas invertidas
— aqueles que vão correr vos saúdam!
e tome ultrapassagens pela direita, reduções bruscas etc. e tal.

df-095 estrada parque ceilândia vulgo via estrutural

onde vi um dia a espatifada carcaça
de uma rotunda melancia no asfalto
absorto no sentido plano piloto
onde incontáveis cães foram eliminados
com a passagem das rodas acelerando
o tempo de sua decomposição natural.

df-095 estrada parque ceilândia vulgo via estrutural

chegará o dia em que não mais te percorreremos
ex-gladiadores do asfalto em carroças tomarão
como zumbis macilentos as marginais
mas tuas pistas repletas de ondulações e buracos
permanecerão sob a halógena luz do vapor de sódio
emanada pelos homéricos postes de teu canteiro central.

df-095 estrada parque ceilândia vulgo via estrutural

ao longo de teus nítidos dezesseis quilômetros
deste rodoviário rosário que se cumpre
entre microtransumâncias e mínimas imanências
a oitenta, então a sessenta, agora a noventa por hora
vamos deixando estes escassos minutos de vida
em velozes prestações rumo ao destino final.

até que não

cubram os sinais
derrubem as placas;
confundam, troquem,
apaguem as faixas.
rasquem o chão e
cuspam-nos na cara
seu barro vermelho
— peguem em armas.
digam que o dia é
noite e a noite nossa
comunhão. maculem
as palavras que nos
enleiam todos os
dias. voltem nossos
antolhos ao passado:
estes corpos vos
obedecerão
até que alguma
mente afoita não.

pro nobis

e não perseguimos mais os rastros
das alegrias e das dores
vamos pelo mesmo rumo podre
cortando caminhos de ratos.
e atravessamos sonolentos
a luz dos dias estúpidos
esquecidos dos conventos
em que, ruidosos e cúpidos,
entoamos nossos discursos.
e somos todos meio a meio:
meio humanos, meio nulos
depositamos os corpos inteiros
nas mãos desses homens brutos.
e devoramos deformidades
e perdoamos nossos donos
se não estamos mais lúcidos
tampouco temos sonhos.

| poemas do livro inédito Cidade na carne (título provisório). |

Luiz Antônio Gusmão, 37 anos, nasceu em Recife e vive em Brasília. É servidor público federal com formação em relações internacionais e ciência política. Traduziu poemas e ensaios publicados em dEsErEnDoS e (n.t.) nota do tradutor, além da antologia O terceiro andar sombrio e outros contos de fantasma, de Ellen Glasgow (Amazon-Kindle, 2018), e do romance O pergaminho Lázaro, de Jonas Cobos (Babelcube, 2018).