Que demônio emana do homem
enquanto
___peixes segregam
suas
___barbatanas?
Madrugada
em poço escuro:
lavamos
___os nossos
rostos
___depurando
o que nos estranha.
O que é
distante nos é semelhante.
Pessoas
___oceânicas,
qual
___santos em extinção,
tiram
algo raro de suas façanhas
como
___se respirassem
sobre uma lâmina katana.
Sabem
___amolar alicates
e salvar-se dos sociopatas
ou deixar saliente um livro
de receitas.
Poetas
___intensos,
no silêncio mais inquietante,
fazem
___de cada estorvo
uma canção.
ondina
Bebo estrelas
e locomotivas
com álcool,
em vermelho devaneio:
as pupilas
se dilatam.
Em cores vulcânicas
penso
no meu amor
que gosta
de montanhas
e nos olhos,
dois oceanos.
Que deflagrem
seus cabelos
ou o próximo tinteiro
no meu peito.
fármacos
A psiquiatria ganha lugar
na feira de liquidação.
Na alegria imediata
do simulacro:
adestrar psicopatas.
Antidepressivos
para curar as feridas
da alma
ou esquecer a amada
[que antes
do beijo toca fogo
nos lábios].
Na cabeça, uma ampulheta,
nas mãos, borboletas fugidias,
em todos os caminhos,
nenhum destino:
apertar o botão abismo.
circular
O poeta
do caos urbano
salta no circular
atravessando
as ruas que mordem
o seu drama.
No absurdo
da vida, nem sempre
bela, a lua passa
de pés descalços.
Eu, que não
tenho moeda, ofereço
meu chapéu,
como quem acena:
evoé, poeta!
infindo
À Elizabeth Hazin
Não sabemos da validade
do fogo.
Febre luminosa
de um poema,
diagnóstico
póstumo.
Falar da casca não duradoura
dos amores que nascem
e se findam, qual infindo orvalho
na face sem alento
do espelho:
como se fosse
pedra na morte
lenta da espécie.
É como abrir as portas
da morada de Deus
e no íntimo do seu
ínfimo não entrar.
Vão-se pétalas
e relicários
e o que temos de sagrado
se esgarça.
curva
Não há estrada certa
ou verdades incontestes.
Até no céu o joio cresce,
só no insólito Deus por perto.
Caminhos, noites abertas
num albergue em deserto.
recusa
Há beleza no apagamento
de fronteiras.
A cada poema uma negação,
a mão
na lâmina, no chão,
na lama, nos molares,
a rasgar a maquinaria
que mata o dia.
Nos motores do porvir
o desconhecido
é bem-vindo.
Sabemos
de Sousândrade
que sentia saudade
do futuro.
A liberdade é um androceu
que se faz carne.
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Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo Edith, 2016). Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da revista Gueto. Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019) é sua mais recente obra.