sete poemas do livro ‘Aurora de Cedro’, de Tito Leite

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Que demônio emana do homem

enquanto
___peixes segregam

suas
___barbatanas?

Madrugada
em poço escuro:

lavamos
___os nossos

rostos
___depurando

o que nos estranha.

O que é
distante nos é semelhante.

Pessoas
___oceânicas,

qual
___santos em extinção,

tiram
algo raro de suas façanhas

como
___se respirassem

sobre uma lâmina katana.

Sabem
___amolar alicates

e salvar-se dos sociopatas

ou deixar saliente um livro
de receitas.

Poetas
___intensos,

no silêncio mais inquietante,

fazem
___de cada estorvo

uma canção.

ondina

Bebo estrelas

e locomotivas
com álcool,

em vermelho devaneio:

as pupilas
se dilatam.

Em cores vulcânicas

penso
no meu amor
que gosta

de montanhas

e nos olhos,
dois oceanos.

Que deflagrem
seus cabelos

ou o próximo tinteiro
no meu peito.

fármacos

A psiquiatria ganha lugar
na feira de liquidação.
Na alegria imediata
do simulacro:
adestrar psicopatas.

Antidepressivos
para curar as feridas
da alma
ou esquecer a amada
[que antes
do beijo toca fogo
nos lábios].

Na cabeça, uma ampulheta,
nas mãos, borboletas fugidias,
em todos os caminhos,
nenhum destino:
apertar o botão abismo.

circular

O poeta
do caos urbano
salta no circular
atravessando
as ruas que mordem
o seu drama.

No absurdo
da vida, nem sempre
bela, a lua passa
de pés descalços.

Eu, que não
tenho moeda, ofereço
meu chapéu,
como quem acena:
evoé, poeta!

infindo
À Elizabeth Hazin

Não sabemos da validade
do fogo.

Febre luminosa
de um poema,
diagnóstico
póstumo.

Falar da casca não duradoura
dos amores que nascem
e se findam, qual infindo orvalho
na face sem alento
do espelho:

como se fosse
pedra na morte
lenta da espécie.

É como abrir as portas
da morada de Deus
e no íntimo do seu
ínfimo não entrar.

Vão-se pétalas
e relicários
e o que temos de sagrado
se esgarça.

curva

Não há estrada certa
ou verdades incontestes.

Até no céu o joio cresce,
só no insólito Deus por perto.

Caminhos, noites abertas
num albergue em deserto.

recusa

Há beleza no apagamento
de fronteiras.

A cada poema uma negação,
a mão
na lâmina, no chão,
na lama, nos molares,
a rasgar a maquinaria
que mata o dia.

Nos motores do porvir
o desconhecido
é bem-vindo.
Sabemos
de Sousândrade
que sentia saudade
do futuro.

A liberdade é um androceu
que se faz carne.

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Tito Leite (Cícero Leilton) nasceu em Aurora/CE (1980). É autor do livro de poemas Digitais do Caos (Selo Edith, 2016). Poeta e monge beneditino, é mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Curador da revista Gueto. Aurora de Cedro (Editora 7Letras, 2019) é sua mais recente obra.