Dois dias depois do meu aniversário de 14 anos, um homem invadiu minha escola e matou 12 crianças. Foi tudo muito rápido. Eu sei que as histórias trágicas sempre começam assim: Foi tudo muito rápido. Mas não estou exagerando. Às 8 horas, começamos uma aula de Língua Portuguesa, e às 8h15, tudo estava terminado.
Não vi quando ele entrou na sala de aula. Eu estava de olhos fechados porque a luz da janela era insuportável, assim como o barulho da turma e o cheiro doce do desinfetante que passaram no chão antes de a gente entrar. Tentei manter minha cabeça imóvel. Ela doía e parecia a ponto de explodir a qualquer momento. Por isso, eu estava quieta, deitada sobre os braços e não vi como foi que tudo começou. Talvez ninguém tenha visto. Os primeiros minutos de aula são sempre tomados por uma agitação generalizada e eu também estaria ocupada conversando com Natália, mas não naquele dia. Naquele dia, nós não estávamos nos falando.
Natália e eu somos primas. Estudamos juntas desde o primeiro ano e vivemos na mesma casa desde que nascemos. Talvez eu pudesse dizer que somos irmãs. Ou quase isso. Com certeza absoluta, somos melhores amigas. Nós também dividimos o quarto, de maneira que acordamos juntas todos os dias, quando o despertador toca às 6 horas. Naquela quinta-feira, levantamos sem dizer uma palavra, vestimos o uniforme, tomamos o café da manhã, descemos a ladeira levemente curva da nossa rua, passamos em frente ao mercadinho, que estava abrindo as portas naquele momento e, depois de mais ou menos 1 quilômetro, chegamos à escola. Há quatro anos percorríamos aquele trajeto e eu poderia fazê-lo de olhos fechados. Sei onde desviar para não esbarrar no poste que fica bem no meio da calçada, sei que é necessário tomar cuidado para não levar uma bolada na cara quando passamos pelo terreno baldio, também chamado de terrenão (às vezes, os meninos miram nos pedestres de propósito, considere-se avisado), e também sei evitar a rachadura na calçada onde as pessoas sempre tropeçam. Passando tudo isso, você chega à escola em segurança. Ou pelo menos era o que pensávamos.
Esse é um caminho de apenas 15 minutos, mas, naquele dia, levamos quase o dobro. Caminhávamos em silêncio e muito devagar. Paramos várias vezes, e em todas esperei que Natália me falasse algo. Mais de uma vez, eu mesma abri a boca com essa intenção. Ficava parada na calçada, com uma frase se formando quase pronta para sair, mas logo a ideia escapulia, incompleta, e eu não dizia nada. Foi assim durante todo o percurso, até que chegamos atrasadas para a primeira aula.
Então, eu estava sentada ao lado da minha prima-talvez-irmã-com-certeza-melhor-amiga me perguntando quando é que aquele dia horrível ia terminar. Eu só precisava esperar, era o que eu pensava, e logo as coisas voltariam a ser como antes. Agora, sabemos que eu estava errada. Como todos, aliás, quando acham que sabem o que vai acontecer. Nada voltaria a ser como antes. Nunca. Minha turma estava na mira de um homem que queria atirar todo o seu passado sobre nós. Em breve, seríamos massacrados. Não gosto dessa palavra, mas foi como chamaram. O Massacre de Realengo.
Eu chamo de O Pior Dia de Todos.
[sobre a autora do livro]
Assim como Natália, personagem deste romance, Daniela Kopsch começou seu caminho na literatura em um concurso de redação. Aos 8 anos, ela escreveu uma história e ficou impressionada com a força de vê-la publicada. “Guarde esse recorde de jornal para seu currículo de escritora”, a professora disse. Memorizou a frase e a reproduziu neste seu livro de estreia.
Desde a infância, Daniela estudou em escola pública, em Balneário Piçarras, pequena cidade de Santa Catarina Percebeu que escrever tinha algo de mágico, algo que poderia fazer as coisas acontecerem. Agarrou esse recurso com força. Entrou na faculdade de Jornalismo e, depois de formada, chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar como repórter.
Na cobertura do Massacre de Realengo enquanto entrevistava as meninas que sobreviveram à tragédia, Daniela se perguntava quem elas eram, o que faziam antes de aquele entrar na sala atirando em todo mundo — de certa forma, este romance começou a ser escrito naquele dia. O relato jornalístico se perde no tempo; na literatura a autora reconstruiu a matéria da memória. Ela quer que essas meninas sobrevivam, não apenas as de Realengo, mas todas que conheceu e procurou retratar aqui.