cinco poemas do livro ‘A estreita artéria das coisas’, de Rafael Zacca

000_capa_zaccacriança que brinca com uma chapinha de garrafa

hermética e aberta a tampa
do caixão espera

o faz de contas
é um lento abridor de garrafas

criança que dirige um mustang

e por dirigir
longe da rua
perto das ondas

onde é bege
o sangue
da água
(dá de cabeça
no asfalto)

onde é bege
a morte
do peixe

do tatuí da água-viva

onde a mãe
fantasia um pássaro
que levasse o filho
sempre de volta
ao ninho

onde é bege o ninho
das cegonhas
bege o útero vivo
das fábulas

a criança
feliz e azul
perto das ondas

amadurece na pele
sem filtro uma mancha
um mustang
cor de sangue

criança que dorme

e sonha que sonha
mais bem sonhada
a pedra portuguesa
debaixo da boca
e baba mas sonha
que sonha não sabe
que sonha embaixo
a pedra e a baba
o verme da mosca
(outro sonho,
de doença incolor
que não dói
fronha rasgada
de ventre solto)
a camisa cobre
metade do corpo
enruga com
suor dos outros
os outros saem
vão para a rua
para o emprego
a solidão
de uma vaca
nos jornais
rumina um pouco
mas sonha são
quatro estômagos
o dia acontece
a criança não
nem acontecerá
meu deus, mas sonha

criança que olha uma fruta
com João Cabral de Melo Neto

o que olha
incomoda de olho
o silêncio, o sono, o corpo
que fechou-se sem nuvens
roupas de faca
o que olha choca
tem ninho, coacla, é espesso
o que olha é espesso
como um brinquedo, uma criança,
como uma galinha

como toda polpa
é espessa
aquela galinha
é espessa e gorda
como uma laranja
é espessa
como um brinquedo
é mais espesso do que uma laranja
como é mais espesso
o defeito do brinquedo
do que o próprio brinquedo
como é mais espessa
uma criança
do que o defeito de um brinquedo
como é muito mais espesso
o defeito de uma criança
do que o sonho de uma criança

espesso
como uma laranja é espessa
como uma laranja
é muito mais espessa
se uma criança a come
do que se uma criança a vê

duas garrafas de heineken que olham crianças

duas garrafas de vidro na areia
as bocas esperam
pés

ou talvez não esperem pés
talvez esperem a maresia
avançar

como um cão
no quintal
se bem que talvez nem tão alegre

avançar, então, como um rabo
de cão sem quintais

a maresia com seu focinho
triste

são dois
focinhos

ou talvez não sejam duas
garrafas talvez sejam duas
pessoas

amaram-se e é isto
agora assistem
a praia engolir
os assuntos

tudo é feito de vidro e serve para ser quebrado

como engolissem
os próprios filhos
como deixassem
de pagar contas

a multidão dos códigos
de barra a multidão de barras
com o casal

atrás de grades
sem assuntos
um casal só grades

esperam o aluguel
são duas garrafas
na areia

esperam o aluguel baixar
querem morar
num minúsculo

pezinho de criança
onde não cabem
nem 600ml
de heineken

como quem dorme
de coração apertado
numa quitinete

mas talvez não seja isso
talvez tudo se passe
como se acordassem
de coração distendido

crescido e preguiçoso
como criança que furasse
a sola do pé na praia
areia e sangue
aquela crescida este preguiçoso

duas garrafas de heineken na areia ficam sem assunto
mas ninguém saberá

| estes poemas fazem parte da seção “Crianças” do livro A estreita artéria das coisas (Edições Garupa, 2018). |

Rafael Zacca (1987) vive no Méier. É poeta e crítico. Ministra oficinas de criação literária na Coart/UERJ. É professor de Teoria Literária na UFRJ. Foi co-articulador da Oficina Experimental de Poesia (2013-2018). Publicou Kraft (Cozinha Experimental), Mini Marx (Editora 7Letras), Mega Mao (Editora Caju) e A estreita artéria das coisas (Edições Garupa).