criança que brinca com uma chapinha de garrafa
hermética e aberta a tampa
do caixão espera
o faz de contas
é um lento abridor de garrafas
criança que dirige um mustang
e por dirigir
longe da rua
perto das ondas
onde é bege
o sangue
da água
(dá de cabeça
no asfalto)
onde é bege
a morte
do peixe
do tatuí da água-viva
onde a mãe
fantasia um pássaro
que levasse o filho
sempre de volta
ao ninho
onde é bege o ninho
das cegonhas
bege o útero vivo
das fábulas
a criança
feliz e azul
perto das ondas
amadurece na pele
sem filtro uma mancha
um mustang
cor de sangue
criança que dorme
e sonha que sonha
mais bem sonhada
a pedra portuguesa
debaixo da boca
e baba mas sonha
que sonha não sabe
que sonha embaixo
a pedra e a baba
o verme da mosca
(outro sonho,
de doença incolor
que não dói
fronha rasgada
de ventre solto)
a camisa cobre
metade do corpo
enruga com
suor dos outros
os outros saem
vão para a rua
para o emprego
a solidão
de uma vaca
nos jornais
rumina um pouco
mas sonha são
quatro estômagos
o dia acontece
a criança não
nem acontecerá
meu deus, mas sonha
criança que olha uma fruta
com João Cabral de Melo Neto
o que olha
incomoda de olho
o silêncio, o sono, o corpo
que fechou-se sem nuvens
roupas de faca
o que olha choca
tem ninho, coacla, é espesso
o que olha é espesso
como um brinquedo, uma criança,
como uma galinha
como toda polpa
é espessa
aquela galinha
é espessa e gorda
como uma laranja
é espessa
como um brinquedo
é mais espesso do que uma laranja
como é mais espesso
o defeito do brinquedo
do que o próprio brinquedo
como é mais espessa
uma criança
do que o defeito de um brinquedo
como é muito mais espesso
o defeito de uma criança
do que o sonho de uma criança
espesso
como uma laranja é espessa
como uma laranja
é muito mais espessa
se uma criança a come
do que se uma criança a vê
duas garrafas de heineken que olham crianças
duas garrafas de vidro na areia
as bocas esperam
pés
ou talvez não esperem pés
talvez esperem a maresia
avançar
como um cão
no quintal
se bem que talvez nem tão alegre
avançar, então, como um rabo
de cão sem quintais
a maresia com seu focinho
triste
são dois
focinhos
ou talvez não sejam duas
garrafas talvez sejam duas
pessoas
amaram-se e é isto
agora assistem
a praia engolir
os assuntos
tudo é feito de vidro e serve para ser quebrado
como engolissem
os próprios filhos
como deixassem
de pagar contas
a multidão dos códigos
de barra a multidão de barras
com o casal
atrás de grades
sem assuntos
um casal só grades
esperam o aluguel
são duas garrafas
na areia
esperam o aluguel baixar
querem morar
num minúsculo
pezinho de criança
onde não cabem
nem 600ml
de heineken
como quem dorme
de coração apertado
numa quitinete
mas talvez não seja isso
talvez tudo se passe
como se acordassem
de coração distendido
crescido e preguiçoso
como criança que furasse
a sola do pé na praia
areia e sangue
aquela crescida este preguiçoso
duas garrafas de heineken na areia ficam sem assunto
mas ninguém saberá
| estes poemas fazem parte da seção “Crianças” do livro A estreita artéria das coisas (Edições Garupa, 2018). |
Rafael Zacca (1987) vive no Méier. É poeta e crítico. Ministra oficinas de criação literária na Coart/UERJ. É professor de Teoria Literária na UFRJ. Foi co-articulador da Oficina Experimental de Poesia (2013-2018). Publicou Kraft (Cozinha Experimental), Mini Marx (Editora 7Letras), Mega Mao (Editora Caju) e A estreita artéria das coisas (Edições Garupa).