carta de navegação
romper cadeias e escrever além dos códices
e dos modismos da vanguarda — além do cânone
ultrapassar a concisão do verso mínimo
compor sonetos no rigor de rima e métrica
tentando ingleses portugueses e simétricos
aventurar-se do insensato ao ultra-lúcido
do social ao pornográfico e ao lírico
e ainda ousar o verso livre e — sem metáforas
desembocar meio a haicais belos e herméticos
e retornar a esgrimir o econômico
minimalismo da palavra exposta ao máximo
usufruir a criação de modo ávido
na liberdade de dizer-se o que é legítimo
fiel apenas à poesia em si e à ética
21 gramas
pudesse talvez um legista
dissecar-me os 21 gramas
perdidos à hora da morte
e que se crê sejam a alma
encontraria 20 gramas de vazio
um de descrença e absolutamente
nenhuma calma — tampouco alma
maria de fátima
tem cinquenta e três anos e trabalha
há mais de vinte e sete nesse clube
lava cento e oitenta e seis toalhas
todo dia na mão lá não tem máquina
diz tenho depressão e estou exausta
não tem máquina digo interrompendo-a
nunca teve repete e continua
são trinta anos nessa lida três
sem carteira assinada envelheci
nem como quando chego em casa tão
cansada e no trabalho dizem que eu
não tenho nada mas a depressão
é doença e o remédio custa quase
cento e vinte reais — e então se cala
como se já tivesse falado demais
um poema à hora do almoço
um poema à hora do almoço
tecido em pensamento
sem caneta
teclado
guardanapo
um poema de sentir saudade
germinado entre folhas
de alface
hortelã
manjericão
diluído no burburinho ao redor
(afinal é hora do almoço)
na fumaça
de automóveis
e cigarros
para depois se evolar rápida e
definitivamente
entre o último
gole do café
e a conta.
pois para que mais serve um poema
de saudade
(escrito
em pensamento
à hora do almoço)
senão para perturbar o apetite e
o coração?
ômega
voem os peixes sobre as árvores de enforcados
e no escuro mais profundo do oceano possam
os pássaros finalmente erguer seus ninhos
teça o vento tsunamis de estrelas de napalm
que derramem-se e derretam todo olho toda pele —
salgue o sangue o que era leite o que era rio
e da terra que era terra e que ora nada nenhuma
vida rebente até que em frio faça-se o quente
até que o que era consciência seja caldo elemental
até que um deus qualquer desperte e o ciclo todo recomece
Márcia Maia é pernambucana do Recife, médica e se aventura nos caminhos da poesia. Publicou Espelhos (2003), um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas (2004), em queda livre (2005), cotidiana e virtual geometria (2008), sem amém (2011) e em queda livre (2012), além de participar de coletâneas no Brasil e em Portugal. É mãe de Felipe, Maria e Tiago e avó de Letícia, Manuela, Alice e Sofia.