a demasia dos meus despudores, de Thiago Medeiros

Espreitava pelo gramado com a mão em concha na orelha, a outra suspensa e espalmada abanando um pedido de silêncio. Fui o único a acompanhá-lo.

— Preste atenção. Vai fazer de novo.

Pouco antes insistia que saíssemos para ouvir. Alguém revirou os olhos. Uma das filhas foi a primeira a não dar discrição a um suspiro.

— Agora. Ouviu?

Não. Nada além das ondas duas ruas abaixo. Quis olhar para o céu, noite clara de estrelas renitentes, mas um pudor respeitoso ao velho mantinha meus olhos na grama.

— Realmente é muito baixo. Pare de andar. Esse arrastado do chinelo atrapalha.

Havia saltado no meio de todo mundo agitando os braços. Aqui é perigoso. Minha mãe, mais para um coice que um pergunta, soltou um de novo, papai, e ele repetindo que se duvidavam viessem ouvir. Aquele primo, que aparecia uma vez por ano, se permitia rir e perguntar se o velho não era homem. Todos continuaram colados às cadeiras, só o meu avô rodando no meio, naquela ladainha de venham ouvir, venham ouvir.

Abandonei um colo qualquer. Tudo o que me parecia fazer sentido ao longo de quase uma década de existência se resumia a provar que não tinha medo. Até a voz engrossei, quase uma declamação, ao afirmar vou com você, vovô.

Meu pai foi o primeiro a estourar com um olha aí, olha aí, o menino se impressiona com tudo, e esse velho não ajuda. Não era um discurso à distinta plateia. Ainda que se espalhasse pela sala, crescendo e inchando, tapando a todos do lugar, era para minha mãe que se dirigia, enquanto ela dizia o amuado de sempre. Deixa o menino, homem. Deixa o menino.

E foi assim que saímos. Ele à frente, numa tocaia silenciosa, aguçando os ouvidos calejados — qualquer conversa com ele era gritada — em busca do que ninguém mais se dava ao trabalho de ouvir.

— Ela faz sempre, preste atenção.

Caçávamos cobras.

Ouvia os chocalhos do mar, mas esperava outros serpenteios. Um rastejo, as maracas frenéticas de uma cascavel em bote.

— Ouviu?

Vi uma naja num filme. Chiava o som de uma onda que não deixava morrer o fervilhar da espuma das bordas. Estava pronto para dizer que era apenas o mar.

— Agora. Escutou o piado?

Não. Não ouvi. Sequer sabia que cobras piassem.

O velho tremia agarrado a minha mão, com a boca despencada. Não precisava falar. Reverberava junto ao vento a insistência da pergunta; ouviu? ouviu?

— Ouvi, sim.

Contemplei sua falta de dentes. Os dedos afrouxaram minha mão. Voltou para espalhar o triunfo.

— Viram aí. O menino também ouviu. Tem cobra por aqui. Posso dormir tranquilo.

Fiquei da entrada acompanhando o caminho do velho. Todos me encaravam. Eu massageava a mão dolorida do desespero do meu avô. Vi alguém balançar a cabeça e me antecipei.

— Ouvi, sim.

Meu pai descruzou os braços e veio até onde eu estava. Ajoelhou-se e disse, não minta.

— Eu ouvi o piado da cobra.

Ouvíamos o cochicho sem fim que vinha do mar, duas ruas abaixo. Latejava uma veia na têmpora úmida do homem. Não minta.

— É fino. Faz até música.

Agarrou meus ombros finos e apertou. Não se mente ao pai.

— Ouvi muito. Lembra um canário.

Minha mãe se levantou, sempre com o seu deixa o menino murcho. Ele rosnou que as coisas não eram assim.

Apertou ainda mais meus braços e me lembrou que os olhos de Deus estão em todo lugar e quem mente ao pai mente direto a Deus e que o pai da mentira é o diabo e o mentiroso é filho do diabo e quem se entrega à mentira renega a Deus e ao pai e torrará num lago de enxofre e é maldito diante de pai e mãe e não há nada pior que a maldição de um pai.

— Eram tantos piados que devia ser uma ninhada inteira.

Me arremessou longe e saiu de casa acendendo um cigarro.

Acho que apenas eu respirava. O sangue faltando na cara da minha mãe, numa mísera palidez que parecia não ter fim. Duas tias retorcendo os dedos. O primo que só aparecia uma vez por ano limpando as unhas com um fósforo. Ouvíamos apenas o ronco alto vindo do quarto do meu avô.

Thiago Medeiros é pernambucano de Caruaru. Escritor e produtor cultural, idealizador o Encontro Literário Letras Em Barro, cuja segunda edição foi realizada em outubro de 2018. Participou da Oficina Literária de Raimundo Carrero. Menção Honrosa no II Prêmio Pernambuco de Literatura, com a obra Púrpura, encarnado em escarlate, ainda não publicada. Aguarda o lançamento do seu primeiro livro de contos, Claro é o mundo à minha volta, pela Editora Patuá, ainda sem data definida. Escreve para não esquecer de si mesmo.