a ausência e eu, de Adriano de Andrade

— Já reparou que você sempre mata alguém nas suas histórias? Não entendo essa sua mania ou, sei lá, obsessão com a morte. Às vezes eu tenho medo de você, do que sai da tua mente.

— Meu amor, a morte é um elemento essencial nas minhas histórias. Algo do tipo, minha história só faz sentido quando eu decido matar alguém. E a coisa vai desenrolando, me impulsiona a escrever, nem tanto pela morte em si, mas pelo fato de alterar a trama, criar um clímax, tudo bem, você não entende, já cansei de explicar, não sou obcecado.

Essa conversa eu pude escutar a uma distância segura enquanto o casal folheava um exemplar na seção de Contos e Crônicas. Acredito que o autor seja ele mesmo, pois a discussão era seguida de dedos que percorriam as páginas e a mulher enumerava as mortes em várias partes do livro. Aliás, eu disse que o casal estava na seção de Contos e Crônicas, mas nada indicava esse local. Somente eu sabia disso, porque sou o dono da livraria e organizei os livros dessa forma. Prateleira direita acima, clássicos da literatura estrangeira. Abaixo, autores nacionais. No lado esquerdo, uma mistura de poesia, filosofia e infanto-juvenil. No meio da loja, algumas promoções e outros títulos inclassificáveis. Perto dos fundos, lá estavam contos e crônicas. Já pensei em colocar pequenas placas para orientar meus clientes. Mas não era necessário, eles eram poucos, o espaço não era tão grande e eu estava lá para responder perguntas simples: “O senhor poderia me dizer onde ficam os livros de autoajuda?”, “Clarice Lispector está desse lado ou do outro?”, “Tem alguma bancada só de lançamentos?”.

A primeira coisa que me disseram é que ficava na Galeria Menescal, ocupando uma pequena loja com saída para a Barata Ribeiro. O lugar é antigo, mas você vai gostar, ouvi do testamenteiro tão logo ele meu deu a notícia da herança.

Herdei a livraria do meu pai, que herdou do meu avô, que começou a montar o negócio com alguns exemplares raros que meu bisavô guardava numa pequena biblioteca montada em sua fazenda, isso lá pelos idos de 1900.

Depois de tanto tempo, precisei voltar ao Rio para tocar o negócio. Quando recebi as chaves, a poeira acumulada era proporcional ao tempo em que a livraria permaneceu fechada desde a morte de meu pai. Finas camadas de partículas que viajaram de lugares distantes e se depositaram caprichosamente sobre capas, contracapas, lombadas e folhas, milhares delas. Do pó se recolhe as passagens, o passado, a experiência, os caminhos e as entranhas do que podemos ver, tocar, sentir e, muitas vezes, não podemos evitar. O pó simboliza o início e o fim. Já ouvi isso em algum lugar. Limpar e tirar a sujeira não significa varrer o passado. A poeira e a ausência dela definem os ciclos das coisas que guardamos e das coisas que descartamos.

Foram semanas mergulhado na rotina de desempilhar, organizar, empilhar, enfileirar. Catalogar e classificar eram o último estágio. Por fim, muito trabalho e pouco resultado.

Assim que decidi assumir a livraria, percebi o contraste. A vida agitada dos cariocas não alterava a calmaria dos livros definhando aqui dentro. Uma loja às moscas. A não ser pela Dona Beatriz.

No início, observava aquela senhora e seu cachorro que paravam todos os dias diante da vitrine. Enquanto o cão se preocupava em cheirar a parede e marcar território, a mulher desviava o olhar de mim e buscava mirar qualquer livro que estivesse ao alcance da sua visão. Esse processo não levava mais que dois ou três minutos, mas eu não podia deixar de reparar um misto de melancolia e angústia.

Aos poucos, ela passou a fazer algumas perguntas tímidas que revelavam um gosto apurado pela leitura. Eu procurava atendê-la com atenção, dando alguns palpites, recomendando obras e autores de acordo com o perfil dela. E o interesse criou o hábito de uma cliente fiel.

— Bom dia, Dona Beatriz, o que a senhora vai querer hoje?

— Hoje estou com um pouco de pressa, preciso correr para levar o Tino no oftalmologista, acho que ele está com catarata.

— Veterinário não resolve isso, não, Dona Beatriz?

— O oftalmologista é um veterinário, uma especialização para animais também, agora é assim, na minha época não tinha isso.

Dona Beatriz passava todo dia em frente à livraria, conversava um pouco comigo, esperava até o Tino puxar seu braço pela coleira e se despedia correndo.

Às terças, ela prendia o cachorro à entrada da loja e levava quatro ou cinco livros. Uns eram dicas minhas. Outros ela já dizia o que queria porque havia lido em uma revista especializada.

Adorava os clássicos. Nacionais e internacionais. Mário de Andrade, Erico Verissimo, Jorge Amado, Liev Tolstói, George Orwell, Mark Twain, Gabriel García Márquez.

— Dona Beatriz, que tal Capitães de Areia?

— Ótimo, excelente, de muita sensibilidade.

— Gostou de 1984? Percebeu como a história é atual?

— Ah, sim, muito atual, sem dúvida.

Dia desses ela me pediu a edição especial do Raduan Nassar. Capa dura, comentou. Demorou um mês para chegar, estava em falta na editora.

Os meses se passaram e completei um ano de fiasco na livraria. Decidi que faria uma promoção de aniversário. Uma quinzena inteira de liquidação. Nesse período, Dona Beatriz me disse que não iria aparecer. Acho que ela queria a loja só para si, em dias comuns e vazios.

Depois que terminou a promoção, abri a livraria na segunda-feira e reparei que havia um senhor me aguardando na porta, com um papel em suas mãos e olhando com atenção o letreiro e o interior da loja.

— Bom dia, o senhor conheceu a senhora Beatriz Mendes de Castro e Silva?

— Bem, se for a Dona Beatriz, conheço, ela é minha cliente.

— Lamento informar, mas a senhora Beatriz faleceu na última semana.

— Como assim? Ela estava ótima, passava aqui todos os dias, sempre comprando livros, conversando, levando o Tino para passear.

— O cachorro também veio a óbito.

— Que estranho, não? Eu gostaria de ter dado um último abraço nela, ter ido ao enterro, prestar homenagem.

Ele se identificou como um policial, um investigador, e que estava fazendo algumas verificações na vizinhança sobre a Dona Beatriz, pelas circunstâncias da morte.

— Que circunstâncias?

— Os médicos que a atenderam nos informaram que foi morte natural, mas um exame mais detalhado revelou uma pequena quantidade de um tipo de veneno em seu sangue, ainda não confirmado. Ela estava sozinha em casa, foi encontrada na cama com o cachorro. Aliás, ela morava sozinha, não tinha filhos nem parentes próximos. Conhecia poucas pessoas, e uma delas é você.

O policial se aproximou e perguntou se eu poderia acompanhá-lo até o apartamento de Dona Beatriz, seria importante que eu visse pessoalmente o “cenário”, mas ele não poderia me dizer.

Como ainda era cedo, fechei novamente a livraria e caminhamos até o apartamento dela, que ficava a três quadras da Galeria Menescal.

Ao abrir a porta da sala, o policial cedeu a passagem e ouvi dele um aviso antes de entrar.

— Cuidado onde pisa.

Para minha surpresa, o chão estava forrado de capas de livros, todos encaixados entre si formando um tapete. Eu me abaixei para pegar uma capa de Cem Anos de Solidão quando o policial me segurou pelo braço.

— Não adianta, as capas estão coladas no assoalho de madeira, sem as folhas.

E minha pergunta foi mais do que natural:

— Ela descartou as folhas e fez um carpete de capas de livro?

— Não é só isso, vamos entrar um pouco mais. Ao percorrer o corredor que dava acesso aos quartos, as paredes e o teto estavam cobertos de milhares de folhas arrancadas de todos os livros que ela comprava, coladas uma a uma.

Reconheci todos os autores e livros espalhados pelo apartamento inteiro. A minha livraria desfeita e ao mesmo tempo refeita, uma verdadeira obra de arte. O policial dissera que Dona Beatriz morava sozinha, mas ela não conhecia a solidão. Estava muito bem acompanhada. Lovecraft, Drummond, Cortázar, Hemingway, Machado, Pirandello e tantos outros.

Era desse jeito que Dona Beatriz vivia. Cozinhava inspirada por O Grande Gatsby, dormia vigiada por O estrangeiro e trocava-se diante dos sonetos de Vinícius de Moraes.

Não voltei para a livraria, fui para casa com aquela imagem disforme, a lembrança recente de Dona Beatriz e os meus livros carinhosamente despedaçados.

No dia seguinte, mantive as portas fechadas e apenas organizei o que restava nas estantes por conta da liquidação.

Antes de sair, pendurei um anúncio na frente da loja que dizia: “Vende-se”.

Adriano de Andrade é engenheiro e escritor, e mora em Niterói-RJ. É autor do livro de contos O inverno que não acabou (Editora Novo Século, 2015) e participou de diversas coletâneas, como Contágios, lançada pela Editora Oito e Meio com organização de José Castello. Está no prelo seu segundo livro de contos, A umidade relativa das palavras, que sairá pela Editora Jaguatirica.