O tom azulado do cordão contrastava com a pele vermelha do pulso. Preso ao meu umbigo ele seguia o caminho até você, prendendo-se com duas voltas apertadas no braço esquerdo. Nosso primeiro choro aconteceu ali, quando a parteira cautelosa te desatou de mim. Foi preciso que ela massageasse sua mãozinha para que o sangue voltasse a circular, foi preciso que ela lavasse nossos corpos trêmulos antes de nos devolver para aquela que havia nos expulsado de nosso abrigo. Mesmo colados ao seio materno sentíamos frio, tão apartados um do outro, tão distantes da intimidade do útero. Buscávamos no leite um reencontro. Partilhar do mesmo líquido, lado a lado, sugando sempre no mesmo ritmo, movimento coreografado das línguas que não cessava até que os dois estivessem satisfeitos. Nunca cansávamos de nos procurar, de tentar restabelecer a completude daquele princípio em que éramos um só. No berço compartilhado a minha pele frágil esbarrava com a sua, a habilidade motora ainda tão primitiva nos incapacitando de dar as mãos. Durante o sono nossas respirações se aproximavam, quase a mesma. Tão próximos, mas ainda sempre dois. Juntos aprendemos a andar, a formular as primeiras palavras que ouvidas à distância pareciam sair de uma única boca, mas que para nós já começava a se distinguir no agudo e grave de nossas vozes. Resistíamos mesmo assim, com as mordidas dos primeiros dentes de leite que marcavam na carne a fome que tínhamos um do outro, com os beliscões que os adultos interpretavam como desavenças infantis, mas que eram apenas uma tentativa de carregar por debaixo da unha um pouco da pele do outro. Juntos aprendemos a traçar as primeiras letras, mas apesar das curvas semelhantes elas se distorciam em dois nomes distintos. Nas brincadeiras descobrimos que bastava um momento de distração para que corrêssemos para lados opostos, que nos esconder um do outro poderia ser perverso, mas ainda assim emocionante, desde que no fim do jogo se mantivesse a promessa de que voltaríamos a nos encontrar. Nunca compreendemos porque para eles era tão essencial nos distinguir, nos obrigar a assumir identidades incompletas, crescer com esse vazio nas entranhas que gritava o desejo de te incorporar mais uma vez, sua vontade de ser novamente eu. Nos consolávamos no espelho, os reflexos tão parecidos que era possível ignorar meus cabelos cada dia mais longos, seus cílios mais finos do que os meus. Mas o espelho também nos foi traiçoeiro. Não hesitou em demonstrar como nossas imagens se deformavam com a passagem do tempo, quando meus seios começaram a despontar, os quadris ganharam curvas, enquanto ao meu lado o seu reflexo permanecia reto. Agora inconfundíveis, eu sabia que você me estranhava, que se sentia cada vez menos parte de mim e, por isso, desejava como nunca voltar a ser uma só coisa comigo. Era natural que seus olhos percorressem o meu corpo enquanto eu me despia, que me acompanhassem durante o banho. Era necessário que suas pupilas assimilassem minhas novas formas e que nossas mãos explorassem cada cavidade procurando meios de nos reencontrar. Que o primeiro beijo acontecesse em um impulso desajeitado dos lábios se esbarrando, das respirações entrecortadas teimando em escapar do compasso. Foi com inocência que nos deitamos para, então, descobrir que só quando você estava dentro de mim, nós nos sentíamos inteiros. E que a completude durava tão pouco, mesmo quando parecia eterna. Não havia nenhuma perversão na nossa descoberta, na tentativa de curar o vazio que nos foi legado. Não éramos culpados do crime do qual nos acusaram. Ainda assim eles nos separaram de forma tão violenta e foi preciso que eu banhasse as minhas mãos no seu sangue para finalmente te sentir em mim.
Raíssa Varandas Galvão é historiadora e doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. Há 29 anos lutando com as palavras e se apaixonando por cada embate.