Pedi-lhe ajuda para escrever um conto. “Um conto, que giro”, disse-me ela. As gajas são assim, parece que gostam de ser manipuladas. Basta que lhes digamos uma ou duas frases ao lado que, zás, eis o epíteto de mistério e querem escarafunchar até ao fim.
Desde o início, ficou evidente que o que eu queria mesmo era tê-la de quatro à minha frente. E para isso estão as tecnologias ao serviço, foi só enviar-lhe a frase:
— Como é, marcamos um dia destes?
Enrolou, disse que já andava num engate. E eu ataquei logo:
— Mas não estou a propor nenhum engate.
Pausa para ela perguntar, há que fazer com que venham atrás de nós, e por conseguinte com que nos venhamos atrás delas.
— Estás a propor o quê?
— Estou a pedir-te ajuda para escrever um conto.
— Um conto, que giro.
Depois foi só meter a teoria literária ao barulho, a importância da vida antes do papel, as tretas de que a literatura bebe da realidade, toda hidrópica, toda alcoólica, até não deixar nada para enganar:
— O que proponho é que o conto seja vivido antes de ser escrito.
Eram duas da manhã e a gaja já sonhava em ser musa literária quando lhe atirei que queria escrever um conto sobre uma senhora fina que leva por trás num motel em Loures.
— Isso é o mesmo que trair o meu engate.
Que menina perspicaz, ainda acaba em teórica da literatura ou a fazer críticas para o Jornal de Letras.
— Claro que não. É fazer trabalho de campo. É o mesmo que dar uma entrevista.
— Vou pensar nisso — atirou-me ela, e eu pus de fora as garras.
— Até já temos título: “De quatro num motel em Loures”.
Os manuais falam de flores e romance, mas estamos em 2019 e o mundo quer ver decadência. E assim foi, a senhora, chegada aos 55, precisava de pimenta.
— Ai, que horror, em Loures. Para ser mais decadente.
Pausa, pausa.
— Mas tenho de admitir que até gosto.
— Claro que gostas. É sexy e romântico.
— Sexy poderá ser. Romântico já não sei.
— Claro que é, há desespero, pelo menos se ficares de quatro vinte minutos só a levar por trás. Também tenho de fazer trabalho de campo a ver se te vens só assim.
Tirou-me logo as ilusões, só assim nunca na vida. As mulheres dessas são raras, um diamante no entulho. Assim como assim, lá me disse que nunca aguentara a genuflexão e a sodomia durante tanto tempo. Eis-me então a ver se a coisa cola:
— As que se vêm assim também não aguentam os vinte minutos. A menos que me deixem continuar depois. E isso só no meu aniversário.
Achou que me estava a gabar, ainda disse que quando se tem garganta só dá para desconfiar. Lá tive de explicar o óbvio: aqueles diamantes vinham-se assim com qualquer/a um. Irritou-me ter de lhe dar explicações, nas minhas fantasias eróticas a gaja dizia-me que sim e acabou.
A realidade é sempre mais chata, as decisões espontâneas têm sempre mais entulho, mas lá nos encontrámos. Eu de mota 125 e ela de Uber, que não podia ser mais decadente. A vergonha de dizer ao condutor que a morada era tal tal, “Como? Não estou a ver onde. Tem algum ponto de referência?”, logo depois do Lidl, no mágico spot chamado XL Room & Tits.
Investi parte do subsídio de férias nisto, a literatura dá-me cabo das finanças. A máquina de lavar roupa precisa de ser substituída e aquela entrada antiga, com um cabide castanho, já deu o que tinha a dar. Assim como assim, juntam-se as gajas aos contos e dou por mim em Loures às três da manhã de terça-feira, depois de ter parado na roulotte porque cheguei mais cedo e de ter comido um pacote de halls porque me esqueci da escova de dentes em Almada. Como se não bastasse, as férias já acabaram e ou a noite corre muito bem e vou para o escritório de directa ou a noite corre muito mal e nem vou conseguir dormir.
No parque de estacionamento, era eu ainda em cima da mota com o capacete espetado num espelho, casaco de cabedal e botas pretas, e ela a chegar no seu vestido branco, deixando para trás um Uber e um gajo velho e de bigode (um invejoso, aposto). Resolvi levar a coisa ao máximo e, quando ela chegou, eu tinha um cigarro Malboro na boca e dentro do bolso havia uma garrafa de whisky como aquelas que os bêbedos têm nos filmes passados na Califórnia.
Começou mal, que assim que ela se aproximou engasguei-me com o fumo. Para se ter este cabedal todo, é malhar no ferro e proteína, não lixar os pulmões e não lixar os dentes. Fingi que não era do tabaco e pumba, lá foi um gole de whisky, e tive de sentir aquele álcool etílico a queimar-me a garganta e o estômago, enquanto os olhos literalmente humedeciam. Pois é, ela à minha frente e eu, malgrado a pinta de badass, a tossir e a engasgar-me como qualquer virgem que nunca pusera os pés em motel nenhum.
Logo depois, a humilhação última, as primeiras palavras:
— Que coisa fofa.
Ainda demorei um bocado a voltar a respirar normalmente, e tive a esperteza de saloia de atirar um “É da asma.” que ela não engoliu porque tinha 55 anos e não um atraso mental.
— Estás a ver se me impressionas?
Coitada, tentou mandar, mas bem que lhe dei a volta.
— Acho que à porta de um motel em Loures às três da manhã de terça não tenho de me esforçar muito.
Trincou o lábio, como quem prepara o ataque, mas calou-se por saber que era verdade. Por mais que eu fizesse asneira, que podia ela fazer? Na altura, já era demasiado tarde para poder voltar atrás.
Não era mau nem bom, até dava jeito e, enquanto aumentava o nervosismo, também o diminuía. Não houve a preparação dos gestos, porque sabíamos que ia acontecer. E houve aquela bola no estômago porque sabíamos que ia acontecer. A tensão que existe às portas de móteis em Loures dá para encher bombas atómicas.
— Como é, entramos? — disse, enquanto mandava a ponta do cigarro ao chão, agora com a boca a saber a sujo e a velho em vez de a juventude.
— Claro, não vim aqui para olhar para uma roulotte.
— Vieste aqui para quê?
— Para te ajudar a escrever.
— Que boa alma.
E boa gaja.
A miúda que nos deu a chave mal olhou para nós e eu resisti à tentação de convidá-la. Nova, mamas pequenas, tudo o que é de evitar. A outra lá tinha rugas a enfeitar-lhe a cara, um tórax que sim senhor e, bolo em cima das cerejas, o desespero próprio da idade. Com menos de 40, toda a gente tem critérios. A partir dos 41, qualquer desculpa serve, é confiar no poder da literatura e de um patoá razoavelzinho que as frustrações com a vida, a falta de amor e os sonhos por cumprir tratam de fazer o resto.
Ana Bárbara Pedrosa, nascida em 1990, é licenciada em Línguas Aplicadas, mestre em Estudos Portugueses, pós-graduada em Linguística e em Economia e Políticas Públicas e doutorada em Literatura. É linguista, editora, tradutora, revisora e investigadora em literatura. Viveu no Brasil e nos Estados Unidos. Actualmente, vive em Lisboa.