privilégio, de Maria Amélia Elói

O celular estava no silencioso, dentro da gaveta da mesinha de manicure. Ao ver o alerta de quatro ligações perdidas e mais cinco mensagens pintadas de emojis, exclamações e reticências, a mãe retorna preocupada:

— O que foi, Renata? Aconteceu alguma coisa com a Aninha?

— Não, mãe. As crianças estão bem. É que fui começar o almoço, mas o frango no congelador está inteiro.

— Ué. E daí?

— Mãe, o que eu faço? Não sei cortar frango. Por que você já não deixou as partes separadas?

— Cheguei em casa ontem às dez da noite e saí hoje às seis e meia da manhã. Vim pro salão a pé e estou há horas fazendo unha. Será que uma marmanja de 28 anos não dá conta de cortar uma asa, uma coxa, um peito, um pescoço de galinha?

— Mãe, é muito complicado. Só sei cozinhar quando está tudo pronto pra botar na panela.

— Renata, é só pegar a faca e separar os pedaços. Corte aí de qualquer jeito, só pra não deixar as partes muito grandes.

— Ah, mãe. Você não pode dar um pulo aqui e me salvar?

— Claro que não. Ainda tenho muitas clientes. Você não vai perder pra uma galinha, vai? Olhe o seu tamanho e o tamanho da galinha; você quente e viva, ela fria e morta. Agora me deixe trabalhar em paz — responde Rose, minha manicure, um pouco irritada, mas sem perder a doçura que a acompanha todo sábado, toda segunda, terça, quarta, quinta e sexta, nem a paciência certeira com que manuseia o alicate.

Nesse dia, após o episódio da ave que não se deixava cozer, Rose se abriu para esta cliente. Falou como nunca, em curta voz e olhos baixos, atentos ao esmalte. (Rose me atende há anos, e eu nunca a soube tão humana, tão cheia de história que merece ser registrada.)

Descobri que ela nunca pôde adoecer, nunca descansou, nunca curtiu um lazer. Resguardo, licença, massagem, preguiça, recesso, férias, viagem, aposentadoria, sessão da tarde, série na Netflix — tudo isso ela desconhece. Sua vida sempre foi maratona sem sistema de amortecimento, água fresca ou linha de chegada. O jeito era correr e se contentar com o prêmio de continuar viva e ir dando conta, sempre com fé em Deus.

Quando ela tinha de sete para oito anos, o pai adoeceu. Moravam na roça. A mãe teve de acompanhar o marido no hospital, e por mais de três meses Rose teve de assumir sozinha a casa e a escadinha dos seis irmãos mais novos. A infância foi esta coisa sem brincadeira, sem escola, só gravidade desde a madrugada até a noite: limpar o chão, lavar vasilha, lavar fralda, passar fralda, não deixar os pequenos morrerem, preparar almoço e janta para a família e para mais dois peões que capinavam o pasto.

— Eu era muito pequena e magricela, tinha umas mãozinhas pequenas e fracas e chorava muito, com o fardo de tanta obrigação; mas mesmo assim arrumava força pra socar o arroz no pilão, pra correr atrás das galinhas vivas, sangrar o pescoço, depenar, cozinhar… Passei muito aperto. Nunca tive essa moleza de encontrar um frango inteirinho no congelador só esperando eu cortar.

Rose entrou na escola aos nove anos. Estudou pouco e se casou muito nova, com um homem alheio, esquisito, abrutalhado. Tiveram quatro filhas, e ele logo foi embora de casa para juntar-se com mais uma e outra mulher, para embarrigar mais uma e outra mulher, para morrer e não voltar. Enquanto casada, enquanto separada, enquanto viúva, Rose sempre cuidou sozinha das meninas.

Quando as filhas cresceram um pouco, ela foi logo virando avó e assumindo grande parte dos cuidados com os netos. Na casa dela, sempre foi, sempre é barriga atrás de barriga. E Rose não aceita falar de aborto, de jeito nenhum. Preocupa-se com as mães solteiras, com os filhos sem pai, com o futuro da família, mas sempre rezando a Nossa Senhora do Bom Parto e agradecendo a chegada dos novos frutos. Faz tempo que brota criança naquela casa, e raramente um “genro” aceita dividir alguma conta ou assumir qualquer peso. Minha manicure nasceu mesmo pra ser mãe — dos irmãos, das filhas, dos netos e até da mãe, quando a velhinha pegou doença terminal. Disse que no ano passado se inscreveu num curso de Educação de Jovens e Adultos. Adora estudar e quer terminar o Ensino Médio, mas falta mais que vai às aulas, coitada, sempre se desdobrando para atender às demandas da família.

— Já estou cansando, sabe? É uma roda girando sem parar. As meninas não me deixam de fora. Quando tem algum bebê doentinho em casa, quem fica acordada, vigiando a febre? Quando tem reunião na escola, quem vai? Quando tem neta depressiva, quem precisa resolver? Quando é preciso comprar uma roupa, um sapato, quem paga? Quando o aluguel fica mais caro, quem procura e faz a mudança pra outro barraco mais barato? E minha filha mais velha não sabe cortar um frango! — ela diz, desta vez um pouco mais nervosa que o habitual.

Rose também lamenta ter de enfrentar a menô:

— Passo mal com esses calores. Precisava de um respiro. Mas tenho que sustentar muita gente. Não posso parar. Pausa não é pra mim. Desculpaí o desabafo. Está tudo bem. Vamos em frente. Pronto. Terminei. Cuidado pra não borrar.

Tiau, Rose. Obrigada. Ficou ótimo. Ah, vou escrever um conto sobre tudo isso, tá? Você me inspirou.

— Escrever? Vai ensinar como cortar frango?

(E eu que nunca precisei caçar, pescar, depenar, moer, usar facão ou panela de pressão. E eu que nunca precisei sangrar. E eu que sonho em matar, sempre com literatura, qualquer fome…)

Cheguei em casa exibindo as unhas vermelhas bem-feitas. A diarista já tinha limpado tudo direitinho. Até a mesa estava posta, à minha espera. Senti o cheiro bom das sobrecoxas desossadas e sem pele que tostavam no forno e me servi de nova porção de privilégio.

Maria Amélia Elói nasceu em 1973 em Taguatinga-DF. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra Poesia Torta. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé — MEC pelo ensaio “Ideias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000”. É servidora da Câmara dos Deputados, onde se dedica a projetos culturais. Em 2016, publicou o livro de crônicas Um milagre para cada corcova, pela Editora Penalux. Em 2017, participou da antologia de contos Novena para pecar em paz, também pela Editora Penalux, entre outras coletâneas. Participa do coletivo Mulherio das Letras.