O cheiro abafado da primeira chuva. O calor insuportável se soltando do asfalto, das calçadas, dos prédios. As narinas respirando pesado o fedor das bocas-de-lobo. Você e eu inertes, irritados com o ar parado e com a ruptura inconveniente da rotina.
O vinho tinto. Decididamente, uma escolha errada. Nenhum de nós pensou que a chuva fosse ser um fiasco de dez minutos. Nós nos preparamos para uma noite úmida, que esfriaria lentamente. Não para este suor escorrendo na nuca, no rosto, por entre as pernas. Não para esta noite que pede conversas sem vinho. Diálogos que não sabemos acontecer. Porque temos sido apenas linguagem de corpos. Porque as palavras são perigosas. Elas mentem. E prometem e pedem e cobram e humilham.
Mesmo assim, hoje eu queria ter palavras. Para contar algumas coisas. Que amo você. Que sinto a sua falta. Que tenho um segredo. Mas continuo silêncios. Não importa.
Chuva idiota. Calor idiota. E esse cheiro de esgoto entupido me provocando náuseas. Não. As náuseas não têm nada a ver com isso. Têm a ver com o que eu ia contar a você. Esta noite, depois do sexo. Nua. Por dentro e por fora. Com uma taça de vinho na mão, encorajando a vontade.
Mas hoje não vai dar. Fica para outro dia. Ou para dia nenhum. Talvez na próxima chuva eu nem tenha mais o que dizer. Porque já terei decidido se carrego este você dentro de mim ou se me esvazio para me gestar em solidão.
Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance. 2017); Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos. 2015. Livro semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos. 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). E do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de várias antologias. Escreve para a Revista Samizdat. Tem textos publicados em Mallarmargens, Germina, Escritoras Suicidas, Diversos afins, Revista Philos, Revista InComunidade e na Gueto.