2161, de Jozias Benedicto

“As cidades restarão silenciosas, sem um veículo:
apenas os pés de seus habitantes
reunidos na praça, à espera de seus nomes.”
(Adélia Prado, O dia da ira)

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e aí a ilha deles a utopia deles os tupinambás de quem se diz q eram os proprietários e senhores de upaon-açu uma ilha sem qq pecado, a utopia q se desanda em distopia não foi só afinal este pedaço de mundo e sim o brazil inteiro q desandou mas como fugir de um destino meticulosamente traçado para a catástrofe para o apocalipse, um projeto de estado q consiste em fábricas de não-pessoas de semi-indivíduos vegetando nos mocambos nas palafitas uma plataforma de governo que consiste em aumentar a desigualdade e com mão de ferro manter tudo como há séculos, primeiro o meu a melhor parte é a minha e farinha pouca e se neste canto de mundo a mentira é a marca o m de maranhão é o mesmo m da mentira e a mentira q é o povo o povo e em nome deste povo amealhar castelos retirando deste mesmo povo a parca comida da boca e governantes onde estão que não governam se aqui nem o altíssimo mais tem mando nenhum e

Quem passava por perto ouvia mas não ligava ao que dizia o pregador, mais um de muitos, com suas palavras vazias, que bem nenhum trazem, apenas mais barulho e o barulho já é tanto que acorda as criancinhas famintas que atapetam as ruas com seu sono de ralas proteínas a farinha pouca e um naco de peixe frito ou sururu ainda com a lama do mangue o que restou do mangue e o nana neném que a serpente encantada vem te levar

mas o pregador, um deles, continua sua ladainha os olhos bem atentos, indiferente à indiferença dos passantes que se empurram e pisam os que fazem sua casa nas pedras das calçadas das praças do velho Centro. Os olhos bem atentos, ele sabe o que procura, o que tem de fazer.

e a ilha sem pecado e vinde a mim q sou a verdade e a vida e não acrediteis nos falsos profetas e nos falsos governantes e se procurais a verdade e a vida olhai nos meus olhos e bem fundo nos meus olhos e

O que o pregador procura está entre as hostes de crianças famintas que se acotovelam buscando a sopa e o pão que o governo distribuí, ele procura uma ou outra criança apenas, não são muitas, ainda bem! graças ao altíssimo são poucas, uma criança que olhe nos olhos dele e ele consiga ver um brilho uma leve luz que mostre que há algo dentro, e quando ele encontra ele já sabe o protocolo, é o “venha, siga-me” e em seguida o empurrar a criança contra a amurada de pedra do tempo do brazil colônia, só que é tudo réplica, claro, as originais já se acabaram como o brazil colônia e o brazil império e o brazil república, tudo pó, e segura firme a criança firme contra a amurada a boca tapada e ele é rápido e preciso e eficaz e “nem doeu, viu?” e mais um ponto atingido em suas metas.

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E a historiadora, encantada, sorriso estático preso no rosto, passeia entre as ruínas e fala sobre as utopias do passado e como agora era o futuro e que hoje sobre as ruínas da base de lançamento de foguetes da época do Brasil-República, “tanto tempo assim?”, as crianças perguntaram e ela: “sim sim!, são séculos em que fomos aperfeiçoando as instituições e repetindo os mesmos erros na economia e fomentando as divisões e criando descerebrados com os programas de TV de domingo e chegando ao ápice da tecnologia ao criar descerebrados de verdade com simples vírus em mosquitos picando gestantes nas periferias”.

Enquanto fala, a historiadora olha para a turma de alunos, examina os alunos um a um e faz um cálculo mental rápido, quarenta alunos, pelo menos trinta deles com massa cerebral abaixo do mínimo aceitável para humanos nos países unidos do hemisfério norte, dos outros dez uns oito não vão além de repetir os slogans, então são aqueles dois de olhar brilhante nos quais eu devo focar, a historiadora recorda as precisas instruções que todo professor recebe e jura seguir, chega perto dos dois, um menino e uma menina os dois de pele parda e olhar brilhante e diz, “querido, querida, venham comigo” e de cima ela os joga rápido e sem dor na máquina construída sobre as ruínas da base de lançamento de foguetes, sem dor sem ruído, apenas um bip e um piscar de um LED indica que sim, ela pode continuar a visita e bem aventurados os descerebrados deles é o reino dos céus e a satisfação de mais dois pontos positivos em sua meta,

e o passeio continua, entram todos, historiadora e as agora apenas trinta e oito crianças, no veículo espacial que os leva de sobre as águas negras da baía de São Marcos ao oceano Atlântico um sobrevoo vendo as dunas e o baixio dos Atins e ela mostra “ali morreu o poeta, afogado em sua cabine”, quando sente que uma criança se acerca dela em pleno veículo espacial justo quando ela recitava os versos mais famosos do poema mais famoso do poeta mais famoso morto afogado em sua cabine e a criança se acerca dela e diz baixinho, “tia, estão faltando o diego-89X43H2 e a mirela-76W65G9” e ela sente um arrepio, como deixou passar esta? ela sempre tão atenta em cumprir os protocolos, mas pelo menos ainda é tempo, abraça a criança “não se preocupe, tudo vai dar certo”, e vê o brilho no olhar que indica atividade no cérebro, pestinha!, mas o veículo espacial faz o voo rasante para mostrar às crianças a réplica em holograma do Ville de Boulogne e nessa hora em que todos se agrupam do lado esquerdo para olhar para o navio que cintila em luzes e o poeta dançando no espaço sua dança da morte, ela a historiadora abre uma fresta uma frestinha só da escotilha do lado direito e arremessa a criança para seu destino o mar lá em baixo “vai fazer companhia pro poeta, sua praga de olhar inteligente!” e o bip e o piscar do LED é a contagem que ela aguardava: mais um ponto e vão deixando para trás o poeta sempre eternamente se afogando preso na eternidade repetida do sufocar em sua cabine recitando seus poemas, um passeio altamente educativo ela havia garantido às mães.

A historiadora chega em casa feliz com o dever cumprido e pensando nas vantagens que vai receber por não ter falhado nenhuma vez nunca e estar até mesmo superando suas metas, só hoje foram mais três pontos e o dia ainda nem terminou. Feliz.

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A mesa de 12 lugares de mogno com as pernas torneadas em estilo manuelino (mogno de plástico, é claro) flutua no espaço sobre as águas da baía de São Marcos na altura do cais da Sagração, palco perfeito para a plateia que se aglomera na praça Pedro II (participação ao vivo significa preciosos pontos na contagem das metas) e mais ainda muito mais espectadores em suas casas e em seus cubículos de trabalho sem contar os destituídos que se aglomeram em todas as calçadas mas estes coitados nem metas tem,

a plateia que se ajunta se dá cotoveladas e se une no mesmo futum de suor à espera da reunião do Conselho e, o mais importante, dos jogos e fogos que marcarão a entrada de mais um ano, o que antigamente se chamava réveillon, este ano que entra o 2161 da era de Cristo ou outros números segundo diversas outras contagens e devido a uma antiga tradição muitos estão de roupa branca mesmo que o branco nunca mais seja tão branco assim e tende a um pardacento claro,

em suas cadeiras-tronos aéreas e semoventes, estas no estilo que se convencionou batizar de hill-house-makintosh, é óbvio que de plástico e com especificações claramente detalhadas na Constituição, cadeiras de uso exclusivo dos altos funcionários, nas quais o espaldar alto se torna mais alto à medida em que o ocupante ascende na hierarquia, sendo que o Chefe do Conselho se destaca, pequeno e franzino e enrugado em seus mais de duzentos anos de poder, com seu imponente bigode negro com fios de ouro, seu bigode que até parece real, sentado em uma cadeira com um espaldar de quase cinco metros;

as cadeiras-tronos sobem no ar e levam os membros do Conselho até a mesa, um a um, a plateia vibra atendendo às luzes que piscam indicando “aplausos”, até mesmo as centenas de milhares de rendeiras em seus cubículos incessantemente tecendo nos bilros quilômetros e quilômetros e quilômetros de rendas que são a riqueza da nação ao serem exportadas para os países do hemisfério norte, até estas mulheres interrompem um segundo seu perene rendar para aplaudir,

o Chefe do Conselho agradece a todos por mais um ano de metas cumpridas e em sua infinita generosidade informa que amanhã, o dia primeiro do ano que se inicia, será feriado, mas que não se descuidem das metas pois elas continuam a ser cobradas, rigorosamente cobradas pelo bem da Nação e a multidão aplaude, e o Ministro do Tempo Passado toma a palavra e lembra que o ano vindouro é apenas duzentos anos a mais que o último ano cujo número, se visto de cabeça para baixo ou de cabeça para cima, permanece constante,

a multidão faz um “ohhhhhhh!” atendendo às luzes e aos animadores, muitas rendeiras, surpresas, se picam com as agulhas de seus bilros mas as rendas com traços de DNA do sangue de rendeiras é um produto altamente valorizado no mercado dos produtos de luxo no hemisfério norte,

o Ministro continua, este último ano com tal característica marcante foi o ano do Senhor de 1961, um holograma surge no espaço acima da mesa fazendo a demonstração de-va-gar para que os descerebrados entendam e as rendeiras se cortem mais uma vez e então o Chefe do Conselho com seu precioso bigode pigarreia e toma a palavra e anuncia que o próximo ano em que isso acontecerá, e são anos muito importantes para a história da humanidade, será o ano do Senhor de 6009 (holograma demonstra, aplausos, mais sangue nas rendas) mas que se todos cumprirmos nossas metas a nossa cultura e a nossa civilização e o nosso governo estarão firmes e fortes aguardando o ano de 6009 (pausa, mais aplausos) e enquanto isso um brinde a este novo ano (fogos, estouro de espumantes virtuais, chuva de hologramas de macarons cintilantes, abraços, beijos, mortes, estupros, latrocínios, incestos, sequestros relâmpagos, atentados, linchamentos) que se inicia, este feliz, este intenso, este inefável, este admirável novo ano de 2161!

Jozias Benedicto é escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro, onde concluiu, pela PUC-Rio, a especialização em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo. Como artista visual, participou, entre outras mostras, da XVI Bienal de São Paulo (1981). Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas, lançado em 2013, foi finalista do Concurso SESC de Literatura 2012/2013. Recebeu o prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 por seu segundo livro de contos, Como não aprender a nadar, lançado em 2016. Recebeu ainda as premiações por seus livros do contos ainda inéditos: Um livro quase vermelho, Prêmio Literário 2018 da Fundação Cultural do Pará — em processo de edição e publicação pela Fundação Cultural; e Aqui até o céu escreve ficção, Prêmio Literário 2018 da Fundação Cultural do Maranhão. “2161” é um conto que faz parte do seu livro Aqui até o céu escreve ficção.