a festa, de Márcia Barbieri

— Já voltou?

— Quase todos foram embora, achei melhor dormir um pouco, estou cansada.

— Não falei na hora que saiu, você fica bonita de preto e o brinco de prata combinou tão bem…

— Papai gostava bastante de me ver com esses brincos.

— Bem… não se pode negar que ele tinha um grande senso estético! Era ótimo para escolher joias e mulheres.

— Senti uma ponta de ironia no seu comentário.

— Esquece, discutir sobre isso é inútil, você sempre defende seu pai. Não é o momento apropriado para isso.

— Tem razão… Não dormiu?

— Você sabe… não poderia dormir.

— Carmem estava lá?

— A amiga do papai?

— Se prefere chamá-la assim…

— Lá vem você cheia de veneno.

— Estava ou não estava?

— Por que não estaria?

— Se tivesse vergonha na cara não estaria.

— É, mas também tem muita gente achando que se você tivesse vergonha na cara estaria.

— Tou pouco me lixando para o que eles pensam, falsos moralistas! Algum deles está na minha pele?

— A família inteira da Tininha estava lá, perguntaram de você.

— Engraçado, muito engraçado mesmo! Durante anos não me visitaram para saber se eu estava viva ou morta, agora sentem minha falta? Balela! Um bando de mexeriqueiros.

— É normal que as pessoas fiquem curiosas. Afinal, era seu marido lá.

— E algum dia ele soube disso?

— Ressentimentos não levem a nada, já conversamos sobre isso, precisa relevar, as coisas aconteceram há tanto tempo! Pelo amor de Deus!

— Tanto tempo? Não brinca! As coisas aconteciam todos os dias, não foram uma ou duas vezes como você tenta me convencer. Ou você é ingênua demais ou quer absolver o seu pai de todas as perversidades.

— Não seja tonta! Não quero absolver ninguém, só não quero que sofra com bobagens, as pessoas erram, as pessoas são falhas, é só isso que quero dizer.

— Sei…

— Você já sofreu demais, tenta descansar um pouco.

— Não consigo, os ansiolíticos não fazem mais efeito.

— Você irá vê-lo?

— Você sabe que não.

— A vovó disse que ele está com o olho aberto e ninguém consegue fechá-lo, disse que só você conseguiria, que precisa perdoá-lo. Afinal, aos mortos tudo se perdoa, não é mesmo?

— Eu o perdoaria se ele tivesse morrido vinte anos antes, agora já não posso, estou tão morta quanto ele.

Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. É uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro e do canal Pílulas contemporâneas. Participa do projeto Senhoras Obscenas. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (edição independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Ed. Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Ed. Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Ed. Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Ed. Terracota, 2014) e O enterro do lobo branco (Ed. Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018.