intercâmbio (In the Mouth a Desert), de Thais Lancman

Can you treat it like an oil well
When it’s underground, out of sight?

Se não tem nada para falar, é melhor ficar quieta. Conselho que nunca segui, não sem arrependimentos e promessas futuras. Minto, segui uma vez, não por achar que era o mais prudente a se fazer e sim como um desafio imposto a mim mesma. Jogar vaca amarela sozinha, com a intenção de esmaecer. O Rodrigo Naves escreveu aquela coisa de a Mira Schendel só querer sumir, e por que eu não posso também? Ser invisível sem ser reclusa, ser só mais uma e assim fazer o que eu quiser.

Com essa vontade eu optei por um silêncio gradual, uma purificação do meu hábito de me contar, me despir, me gritar, uma vez que ele só diz respeito a mim e não ao outro. Falando menos, revelando menos, entrego o que tenho de mais verdadeiro e me afasto de todos à minha volta como um barco não amarrado no cais.

And if the site is just a whore-sign
Can it make enough sense to me?

Minha experiência começou com amigos, e fracassou no terceiro gin tônica, quando me vi às voltas com uma história idiota, porque minhas histórias são idiotas, e não poderiam deixar de ser se sempre começam na primeira pessoa, com os verbos ler, ver, pensar, e o resto é tudo na terceira pessoa. Sou eu mesma expectadora do que narro, discursando da minha janela para o Minhocão, fofocando a visão de poucos metros de via elevada como se fosse o mundo e o que tenho de mundo para me relacionar.

Os meus amigos falam de viagens e trabalho, eu não viajo nem trabalho mas já viajei e já trabalhei então posso ser uma boa ouvinte. Posso rir e fazer ahãs e a-ãhns de forma que, sóbria, tudo funciona muito bem. Consigo me relacionar de certa forma com o que eles me contam, Ao falarem da ida à Tailândia nas próximas férias, posso relacionar com alguém que eu conheci que fez viagem semelhante, ou quando falam da Europa posso concordar com as expectativas e rir das gafes que as diferenças idiomáticas provocam. E é fácil me recolher quando chega a minha vez de falar — embora com certos tipos de pessoa não existe essa organização — pois, novamente, eu não tenho muito que continue uma conversa, são sempre ideias soltas e desconexas com qualquer projeto de realidade. Nada disso faz diferença quando se está com um drink na mão, então me vejo vítima da minha armadilha. O protótipo número um da experiência de silenciamento falhou, estou novamente sinalizando que preciso de todos, me destacando ainda que seja como uma caricatura patética de alguém exótico ou, como talvez meus amigos falem de mim, alternativa. Alternativa a eles.

Pretend the table is a trust-knot
We’ll put our labels down, favors down

Manter o silêncio quando estou em família é fácil. Porque eu quase nunca bebo — sou caçula, eterna criança — e quando bebo fico melancólica e casmurra, naturalmente em silêncio para não começar a chorar de forma descompensada. Fico quieta e mordendo os lábios, me retraindo, me aninhando no ombro de qualquer um que vai saber me dar carinho e achar doce aquilo que acabei de fazer. Todos ganham. Se bem que, em família, falar e não falar dá no mesmo. Outro experimento interessante foi contar histórias nos almoços de família parando de repente, para testar quem estava prestando atenção. O resultado, pouco surpreendente mas mesmo assim irritante, foi que em nenhuma vez houve pedidos para que eu retomasse a história, nem mesmo uma cara de questionamento quando eu interrompia uma frase pela metade. Extasiada e revoltada com o resultado, fui mais longe e comecei a inserir escatologias sem sentido no meio das histórias. Contando as novidades do mestrado, vez ou outra dizia algo de nojento e inadequado, uma descrição detalhada do processo de enfiar uma agulha no olho e cavucar o que estivesse lá dentro, sem que recebesse em troca uma expressão de nojo sequer. Como eu queria ouvir “pare por favor!”. Mas, no final, a única incomodada era eu mesma, com nojo do que eu falava e da falta da resposta, eu já disse, gosto de me contar. Confesso que há um lado bom no silêncio, o papel de observadora, não é meu favorito mas também não me desagrada.

I’ll watch a yarn of twine unravel
And you’ll never get it back

Em casa, o emudecimento progressivo gerou até preocupação no começo. Mil perguntas, tá tudo bem, quer alguma coisa.

It’s what I want (it’s what I want)
It’s what I want (twine comes down)
It’s what I want (it’s what I want)

Depois do interrogatório inicial, fica mais fácil. É só ouvi-lo contar do seu trabalho, dos pagamentos, dos funcionários.

Don’t you know
I could make a try
Make a try
Make a try
Make a try

Sem beber e sem falar de mim, já não sei do que eu sou e do que gosto, ou do que gostar a partir de agora. A experiência só se completará quando estiver no fundo desse mergulho do silêncio, já se falava em meditação Vipassana e outras ideias de silêncio contemplativo. O meu não tem nada sacro, sou apenas eu demonstrando meu cansaço das outras pessoas, minha vontade de desaparecer. Estando sempre sóbria, e como todos vão falando mais e mais alto quando bebem eu vou como que minguando nos eventos sociais. Até que vou embora em silêncio, andando afoita para casa, fones de ouvido, música instrumental alta para nem me dar vontade de cantar junto, tamanho o poder que o emudecimento impõe sobre mim.

Aos poucos, disseco o meu pensamento:

Uma mania antiga de me auto entrevistar. Caminho imaginando explicações sobre a minha rotina, meu bairro, o Minhocão e o que penso de sua desativação, os tantos motivos que me levam a não ter mais um carro, as explicações sobre minha casa, uma definição de rotina saudável e vida em equilíbrio, o tempo passa e dentro de algumas horas começa de novo a entrevista, um perfil eterno que nunca será publicado e está sempre sendo reescrito, as respostas cada vez mais certeiras, frases bonitas que vão dar bons destaques na edição final. Preciso parar com isso. Aprender o que se pode pensar sem que seja um diálogo, ainda que seja comigo mesmo ou com uma figura difusa a minha cabeça só funciona em diálogo. O silêncio precisa me invadir, a falta de verbo, por isso música instrumental.

I’ve been crowned the King of Id
And Id is all we have, so wait
To hear my words
And they’re diamond-sharp

Como é o pensamento não verbalizado? Como aprender a machucar e se preservar sem ser com palavras é impossível, desapareço no horizonte. É preciso se manter firme para recusar convites, não aparecer da mesma forma sutil que se vai embora. Teve a vez em que um dos integrantes da banda contratada, o baterista — sempre ele — veio conversar comigo enquanto eu aguentava um cigarro para ter motivo para estar do lado de fora. Afastada para evitar conversa, e ele veio me perguntar o que eu tinha achado do som deles. O que responder para um monte de versões genéricas de clássicos, o bom é que uma palavra basta, apesar de uma sílaba já bastasse para me arrastar ao ponto de partida desse jogo de tabuleiro da afonia. Também foi a largada para uma corrida de autoelogios que ele se fez, e promessas de que seria famoso. É engraçado, a fama para mim nunca foi um valor em si, e não foi a primeira vez que ouvi algo do tipo, a outra foi a ex-namorada do amigo corporate.

Outra coisa é como as pessoas podem gostar de alguém ou algo que não é inteligente. Na festa tinha um cachorro com a dona e ela se derretendo em elogios ao seu companheirismo e à graça de sua burrice. Um cachorro não tem obrigação de tem inteligência, mas ela não deixa de ser virtude. Talvez essa seja a primeira afirmação que faço sobre uma pessoa ou um animal. Ou até mesmo sobre um equipamento eletrônico. E na mesma lógica do “fotografamos o que temos medo de perder”, assim como temo parecer burra deixo transparecer o quanto isso é a minha redoma de vidro através da qual interajo com o mundo, ainda que ela seja à prova de ruído então nada eu ouça nem me faça ouvir. No silêncio o meu intelecto fica hermeticamente fechado, e se lá dentro está um pote de veneno que pode abrir ou não a qualquer momento, sem emitir sons ou opiniões me reservo o privilégio de ser, ao mesmo tempo, gênio e idiota. Na eterna expectativa, a minha, de algo derradeiro sair pela minha boca e que todos aguardam ansiosamente por essas pérolas e a espera só desperta curiosidade.

I could open it up
And it’s up and down

Então o baterista foi até o Uber que eu chamei para me levar para casa e começou a cantar segurando a porta do carro e não deixando que eu a fechasse. Senti que ia ter que gritar mas logo pensei que um gesto seria mais potente. Puxo a porta enquanto guardo as pernas, o motorista ri e me dá boa noite. Ele sente que tem algo a dizer embora eu discorde, eu tenho muito a dizer, acusar, mas prefiro o silêncio, até sorrio. Penso na minha casa e na minha gata, lá eu converso contemplada pela falta de resposta humana. Lá eu reino ou sou a escrava de um animal que parece ter um prazer enorme em me ver limpar suas fezes na caixa de areia.

Quando encontro pessoas, existe sempre uma espécie de solidão, para além do estar no meio de gente e mesmo assim estar sozinha, isso não me incomoda até eu notar o segundo passo: não saber desenvolver os micro relacionamentos dessas ocasiões. Existem conversas ligeiras, mas nada que vire algo além, nem curiosidade. Não lembro a última vez que fiz um amigo. Quero deixar morrer essa vontade de cativar, conquistar da inveja a indiferença, e talvez o melhor jeito de conseguir isso seja me escondendo, não, me dissipando no espaço da vida agitada da cidade, dos prédios que escondem personalidades e defeitos, no silêncio ruidoso do falatório sem sentido e exibicionista de filosofia barata, problematização excessiva. Por isso prefiro ser ignorante, a ansiedade em não saber o suficiente nunca, mas como podem esses que sabem menos sentirem que sabem tanto? Me perder em um mar de filmes que desconheço, literatura clássica que não li apesar de tão básica, para mim e para os outros que importam. Meus pares perdidos no tempo. Não chamar a atenção nem chamar a atenção por não chamar a atenção. Não ser esquisita. Não mais eu. Não-eu.

Ooh-ooh-ooh-ooh-ooh-ooh-ooh (8x)

Eu tenho medo de usar droga, de virar alcoólatra, eu tenho medo de vento forte, só não tenho medo de andar sozinha na rua à noite porque nunca me aconteceu nada. Mas tenho medo de semi-conhecidos que querem me levar na porta de casa, me acompanhar no metrô ou falam perto demais do meu rosto. O teste das 16 personalidades disponível online e gratuito me situa no perfil do arquiteto, apenas 0,8% da população mundial corresponde a mulheres desse tipo. E não apenas pela baixa frequência mas também pelas nossas características fundamentais, sou marcada pela solitude.

O astrólogo me falou de desapego, atravessar uma ponte com uma mochila em vez das duas malas pesadas com as quais estou acostumada. E disse que sou ambiciosa por reconhecimento, admiração, porém que vai demorar. Sento e espero, às vezes fazendo algo a respeito.

It’s what (it’s what I want)
I’ll see you beg like a little dog (ball and twine)
Don’t you know that
It’s what I want? (it’s what I want)
I’ll see you beg and it makes you dry

Porque você só pergunta se está tudo bem e nada mais, você não quer me ouvir contar das minhas coisas, quanto menos eu faço menos novidades tenho e elas são todas como as de uma perua de meia idade: a casa, a gata, picuinhas no prédio, musculação e tevê. Poderia ler para você os poemas favoritos do Álvaro de Campos mas nunca seria como antes, quando você riu e disse que eu tenho um poema para cada situação. Você quer que eu fale mas não quer ouvir, quer que eu seja um cachorrinho brincalhão mas não brinca comigo, e agora me cobra uma postura sei lá qual, me deixe em paz. Talvez essa seja minha autodestruição, nem mesmo seguir até o fim com essa brincadeira de silêncio, meu fracasso é estar condenada a boiar como se estivesse no Mar Morto, há profundidade mas eu não chego a ela, você me prende na mediocridade, não, eu mesma me mantenho assim por vergonha, preguiça, autoengano. A diferença entre os normais e os gênios é que eles atravessam a fronteira da auto complacência, chegam até o fim da própria estupidez e de lá começam a erguer o castelo, nós os outros nos deixamos levar pela ideia de que já existe algo erguido e que nosso trabalho é só dar um acabamento, uma cara, encher de adornos. A superficialidade das minhas ações é a boia das minhas ideias.

Make me dry
Make me dry
Make me dry

De boca fechada parece que a saliva vai deixando de ser produzida, talvez o corpo saiba que ela se faz menos necessária e entra num modo defensivo e preguiçoso de ser. A boca seca quando a utilizo menos, vai se retraindo e colando, tornando uma retomada mais difícil. Ela também se adapta, o indivíduo tem muito mais poder dentro de si e no sentido infinitamente interior do que em constante expansão, é como se ele soubesse que isso não vai muito longe. Na direção de si mesmo, tudo é possível, os dentes mastigarem a língua e deglutirem as gengivas, tudo virar uma farofa prestes a ser engolida, digerida e retrabalhada nos tecidos. Ou então nada disso acontece e essa ponta do aparelho digestivo, responsável por iniciar o processamento do que ingerimos e também pela fala, o fim do trabalho do raciocínio culminando na expressão, esses órgãos interligados entra em modo de espera, hiberna, e ou se torna outra coisa ou atrofia de vez.

I’ve been down, the King of Id’s
Id’s all we have, I’ve been down

É preciso secar para mergulhar em mim mesma, a minha única chance de saber o que eu posso ser, e enxergar na possibilidade uma redenção. Só assim vou descobrir se tenho uma voz, parar de dialogar é também ficar com a boca cheia de flores e peixes, segredos prenhes, tesouros. E esse mergulho vira um passeio em dunas infinitas, paisagem alienígena do tipo que não se crê na existência. Mas se espera por ela como pelo Papai Noel. Eu vou aprender comigo porque assim terei histórias, um poço infinito delas, tanto em profundidade quando em água a ser oferecida para uma imensidão de sedentos.

And I could wait
To hear the words
They’re diamond-sharp today

Meu som. Meu ar.

Thais Lancman é uma escritora paulistana. Publicou em 2014 Palito de Fosfeno (Ed. Reformatório) e agora está publicando seu segundo livro, Elementos Fundamentais, na forma de um perfil de Instagram de mesmo nome: [link]