abate diário
1.
porque só se pode sonhar
no lugar de um outro, escrevo
e ainda assim sucumbo
numa mudez sem saída
porque a língua não salva o olhar
nem a mão, nenhuma mão, pode tocar-te.
Percorres, de olhos no chão,
essa linha traçada pela promessa
pela qual trocaste todo o dinheiro
trazendo os filhos,
a quem, sorrindo, falaste
de um novo mundo
longe da guerra longe da fome
esperaste longos dias à deriva
enquanto a criança morria nos braços da mãe
e a terra se avistava ao longe
cantaste, baixinho, enquanto choravas
e vestias a mortalha do olhar
deus, esse deus, onde estava agora?
Nenhum canto nenhum salmo
o vento calou-se sob o mar
Mais tarde seria um outro
no lugar de um outro, sem fim,
a luz do mar é cruel, senhor
e a terra está cada vez mais próxima
mas os lábios secam, a fome devasta
as noites são frias frias
deus, esse deus, o deus dos outros, onde estava agora?
A terra está tão perto
os olhos cegaram-me
de tanto olhar a luz deste mar
a promessa fez-se noite
e canto, baixinho, um salmo
à espera que ele nos responda
deus, esse deus, abandonou-nos?
A terra estava tão perto. À distância de um sonho.
2.
Vieram do norte e ocuparam o seu lugar
estenderam uma manta negra
tão grande que tapou o sol
e o mundo mergulhou na sombra
o ar que as mulheres respiravam era fétido
e as crianças ficavam doentes
e de olhos vazios, com males estranhos
e os pássaros fugiram, não se sabe para onde
mesmo na Primavera não regressaram
porque a sombra não desaparecia
e a sombra estendia-se cada vez mais
agora não era só a terra, mas havia também o mar
que já nem era claro e transparente
e os peixes davam à costa, sem vida.
Os homens procuravam o esquecimento
nos braços das mulheres e nos bares
enquanto o velho pescador lhes falava
do mar antes da chegada da sombra.
Os homens cansavam-se das palavras do velho
esse louco preso ao passado
mas qualquer coisa os levava
todos os dias ao bar
a ouvir as histórias do velho
lá fora era o vento, sabiam,
o silvo do mal, essa sombra ininterrupta
que trazia doenças e escuridão.
Qualquer coisa os fazia acreditar
um fio longínquo que os trazia de volta
ao tempo dos nomes
ao tempo de um silêncio cheio
e sem medo.
Pode um homem sonhar, ainda,
enquanto as asas do mal o assaltam?
afrin
Para Hussein Hasbach
Dizem que o pesadelo dos soldados do Estado Islâmico
é ser morto por uma mulher,
dizem que não terão as 72 virgens
nesse paraíso sonhado que os espera.
E elas, peshmerga, enfrentando a morte,
olhos de tigre, saltam-lhes ao caminho como demónios
livres e sem véus, implacáveis,
elas que, no amor e nos filhos, respiram a ternura
e a salvação.
Ceylan matou-se com a última bala de que dispunha,
talvez tivesse tido medo nessa hora,
mas o tempo não é para medos nem delongas
e Ceylan também não sabe ser heroína
que isso é para as ocidentais plasmadas
No tédio das suas vidas vazias,
entregues à contemplação de miragens,
criadas pelos que vendem a morte
em longínquas paragens.
Arin fez-se explodir, para não cair em mãos inimigas,
O seu corpo matou tantos quanto pôde,
em nome de um povo, que só na alma e no coração
conhece a sua pátria,ardendo
no olhar das suas crianças, quietas,
à espera do futuro, que silva entre as balas
e o sangue, as vísceras dos seus mortos.
Aqui, em Efrin, só a morte canta,
só ela floresce, petrificando,
diante da nossa indiferença gelada, muda.
*
na terra do meu pai corria um rio
e não era ainda o do tempo
nem eu nadara nas múltiplas
águas de Heraclito, um rio
onde a sombra e o riso
acolhiam o nosso corpo
ainda intacto
no incêndio da manhã
na terra do meu pai havia laranjas
e chão, havia sol
e nós ouvíamos a respiração da noite
por dentro das raízes das árvores
e o rio falava com as pedras
e com a luz
e nós corríamos
ou éramos levados pelo vento
na terra do meu pai não havia medo
só um rio
e os homens tinham nome
era um rio por coração
era um nome
para um homem.
savana
Se eu te pedisse a demora, pai,
De um corpo adiado, ainda,
e te contasse de novo as viagens
que fazíamos no tempo antigo
e as minhas palavras pudessem
aquecer o teu olhar, trazê-lo de novo
ao meu chão, às minhas mãos,
como as histórias que me contavas
e depois ríamos inteiros.
Se eu te pedisse a demora, pai
para recomeçar a vida, para recompor
a ruína, juntar todos os ossos
para te devolver a luz da savana
e a respiração das árvores, o inexaurível canto
da terra, do rio que havia
e do olhar bravio das gazelas
no fulvo dorso da madrugada.
Se eu te pedisse a demora, pai
para recomeçar tudo de novo,
infância e areia correndo por nós,
só a música e o segredo da savana
o fogo da tribo, a dança
e sempre o tempo
o da fala antiga
o que se anela com deuses
e com o pó.
Maria João Cantinho nasceu em 1963, em Lisboa. Viveu em África durante a sua infância e licenciou-se em Filosofia, na Universidade Nova de Lisboa. Doutorou-se em Filosofia Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa (com co-orientação da Université Marc Bloch de Strasbourg). É ensaísta, poeta e tem colaborado em inúmeras publicações académicas e literárias, em Portugal, França, Espanha, Brasil, Índia. Publicou um livro de ensaio, livros colectivos em que participou e co-organizou (sobre Celan, Benjamin, Levinas), três livros de poesia e duas obras de ficção e foi nomeada finalista do prémio Telecom no ano de 2006. Actualmente é professora do Ensino Secundário e também do IADE (Creative University of Lisbon), membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Letras de Lisboa, onde tem organizado congressos e conferências. Colabora regularmente com revistas de literatura e crítica literária (Colóquio-Letras, Golpe d’asa, PensarDiverso, Letras com Vida, etc.) e tem integrado várias antologias de poesia, bem como organizou algumas. Tem no prelo uma obra colectiva sobre Walter Benjamin (Brasil) que co-organizou com Amon Pinho e um livro colectivo sobre Paul Celan, em co-organização com Carlos João Correia, Cristina Beckert e Ricardo Gil Soeiro. É membro da Direcção do Pen Clube Português e da APCL (Associação Portuguesa dos Críticos Literários).