conto de múltipla escolha, de Myriam Campello

A casa é sua?

(__) Sim. Não. Sim.

(__) É de uma moça que conheço. Portanto minha até segunda ordem.

(__) A casa é do escambau (“série de outras coisas não mencionadas”).

— Who is Escambau?

(É fato comprovado que passamos metade da vida dando explicações, e a outra metade inventando-as.)

Seu grande amor foi embora por quê?

(__) Amou pouco.

(__) Amou muito mas preferiu não chocar os pais.

(__) Amou muito mas evitou quizumba (“conflito em que se envolvem numerosas pessoas; confusão”) com os filhos.

(__) Amou?

Seu aparato mental funcionava a contento?

(__) Sim. Pois não raro se lançava a digressões de agudíssima percuciência, com desenrolos imago-poéticos muito além do que podia alcançar a mente comum. Era bamba na matéria. Sobretudo nas infinitesimais.

(__) Não. O caso é autoevidente. Havia algo de singular naquele sobe-e-desce. Muito olhar ao longe para ver apenas carneirinhos.

(__) Depende. Três dias por semana sua mente era um Hubble: alcance e nitidez. Nos outros, a casa da mãe Joana. [Sobre o assunto ver Spivack, Tese e contratese].

Hesitou em destroçar o que antes professara ser a razão de sua vida — um amor sem igual?

(__) Nem um tico. A rapidez com que destruiu a relação foi de tal monta que USA e China pensaram em comprar sua ideia e usá-la em bombas terminais.

(__) Sim. Alguns lhe notaram um leve tremor no supercílio esquerdo antes de mandar tudo para o inferno.

Terá no presente alguma lembrança do ocorrido?

(__) Lhufas. Para não ser molestada por acenos conscientes inconscientes e caterva (“grupo de pessoas, animais ou coisas”), a personagem sepultou a própria memória com a ajuda de potentíssimas escavadeiras que de um buraco fizeram uma montanha.

(__) Sim. Um sopro de lembrança a assalta por segundos a cada ano (sempre no dia de São Jorge). Depois, as areias do tempo soterram-lhe as lembranças até o ano seguinte, quando Jorge ressurge matando o dragão. Nesses momentos sua mente dançante comove-se e odeia ao mesmo tempo, com igual ímpeto. Está e não está amoureuse na mesma fresta horária. Se o gato de Schrödinger não existisse ela poderia ir para a caixa em seu lugar, fornecendo ao público um perfeito exemplo quântico. Contudo é preciso pôr de lado a última esperança se quisermos entender todas as sutilezas da personagem. Soltem as amarras, apertem o cinto e deixem-se levar pela riqueza de sua índole.

Reconheceria ela a barafunda (“balbúrdia, tumulto, pandemônio”) que causara? Assinaria o monte de escombros como de sua autoria?

(__) Não. Recusava peremptoriamente o papel de verdugo. Pelo contrário, atirava essas pedras na direção oposta, isto é, em quem ficara sob o entulho. E anunciava aos quatro ventos que a soterrada fora ela própria, para espanto dos que tinham presenciado os fatos. Nesse instante a lógica ia para o brejo de uma vez, recusando-se a deixar o lodaçal ainda que lhe acenassem com uma compensação em euros.

(__) Mais ou menos. Graças à natureza gangorrial (gangorra: “prancha retangular, comprida, apoiada no centro, que duas crianças, cada qual em uma das extremidades, impulsionam para o alto pela pressão dos pés no solo, de tal modo que, quando uma das extremidades toca o chão a outra chega ao alto”) da protagonista, a Verdade a visitava quando em vez. A Nostalgia também dava as caras, e a personagem se punha a escrever odes sublimes em homenagem a quem deixara a ver navios.

(__) Sim. Momentos pungentes. E tão raros quanto Nessie pondo a cabeça de fora no seu frio lago escocês. Em tais horas de saudade, revisitava toda a sua vida e prometia fazer algo a respeito. Num certo jantar de Natal, no instante em que todos se calaram e puseram-se a comer, ela se deparou com a extensão de sua asneira. Empalideceu, engasgou, quase morreu. Dada à extrema fluidez da questão, convocou-se um grupo de três sábios para bater o martelo sobre o assunto. Os três meditaram por seis meses, concluindo afinal que não podiam alcançar o objetivo proposto. E citaram o ditado que ronda o Cabo Horn a respeito destas águas furiosas: “Abaixo dos 40° de latitude não há lei. Abaixo de 50°, não há Deus”. A personagem em foco, disseram eles, está bem abaixo dos 50°. E foram embora depois de pagos.

E o futuro?

(__) As duas nunca mais se viram.

(__) Viram-se mas não se falaram devido ao momentoso instante.

(__) A Deus pertence.

Myriam Campello (Rio de Janeiro) é romancista, contista e tradutora brasileira. Publicou Cerimônia da Noite (romance, 1971), vencedor do Prêmio Fernando Chinaglia para romances inéditos, Sortilegiu (romance, 1981), São Sebastião Blues (romance, 1993), Sons e Outros Frutos (contos, 1996), Como Esquecer, anotações quase inglesas (romance, 2003), adaptado para o cinema no filme homônimo dirigido por Malu de Martino, Jogo de Damas (romance, 2010), Adeus a Alexandria (romance, 2014) e Palavras são para comer (contos, 2017).