#dia25 | falha geográfica
esta noite não sei
o mundo, arrepiado,
está entrando aos trambolhões
todo pela rachadura que se abriu
à latitude -22.9 com longitude
-43.1 ali mais coisa
menos coisa na altura
do posto 5 mais concretamente
a 20 passos da linha do Atlântico
exatamente no ponto em que
é possível caber entre braços
toda a paisagem indecente
quântico interstício
de tudo
que é íntimo e ausente e eu não sei
o mundo, arrepiado, está
todo indo por ali abaixo
num vício biográfico
danado
o pior minha gente
é que a fenda tem luz própria
é toda colorida de açaí e acerola
e tem um barulhinho
lá no fundo
espera aí
é uma caixa de fósforo
tem alguém batendo nela
a cadência nova do samba
o mundo tá doido
o mundo tá doído
quer chegar junto
chega mais cabe mais
e não há controle
não há respeito
é trambolhão mesmo
o mundo está desaparecendo
aos poucos esta noite
a rachadura fechará
pontualmente antes que eu chegue
para ligar o dia
e avaliar os danos
é assim desde que a geografia nos falhou
—
ps: este domingo
passa lá no posto 5
para eu te ver passar
vou estar lá na areia
a 20 passos da linha do
atlântico
com os pés firmes
no magma azul
pulmões expandidos para a avalanche
quântica de oxigênio
de binóculos
ou telescópio
só para te ver passar
no equilibrismo óptico
de te encontrar entre milhões
de meteoros secundários
e depois, o mundo
o calendário o mar os luzeiros
talvez se entendam
vou estar lá na areia
para te ver passar
dedicatória
vai ficando tarde
tardo. estou abotoando
minha coragem
mudei de casa, de estação
mas de saudade não, não mudei
bem tentei, nos classificados nos bondes
mas teu olho esquerdo é tão
diferente do teu olho direito
ninguém mais desobediente
do que o confuso de peito
está ficando tarde. ok.
tenta apreciar o manuseio de horizontes
o plantio de um novo planeta
ainda intermitente
antes, te dedico a leve chuva
que rodeia os templos
fóton
isso era no tempo em que
a luz de maio entrava
pontualmente
às quatro da tarde naquela
avenida da Urca com aquela
soberba dourada bêbeda de américa
e se refratava nos recortes
insuspeitos dos troncos dos coqueiros
do alcatrão malemolente
para finalmente se alojar
em algum indício corpóreo
de uma microexplosão
e durava quatro minutos
precisamente — a luz dos maios rotos
e logo mais à frente
o verde dos morros
a respirar nuvens
isso era no tempo
em que maio explodia e éramos jovens
de nós — e logo esplendia
pelos ralos tudo que escrevíamos
com luz
| poemas do livro outono azul a sul (2018), publicado em Portugal e no Brasil pela editora Urutau [editoraurutau.com.br], com ilustrações de Edgar Duvivier e António Martins-Ferreira e posfácio de João Almino. |
calí boreaz nasceu no outono, em Portugal. de origem parte do Ribatejo, parte da Beira Baixa, estudou Direito em Lisboa em meio às noites de fado, depois aventurou-se a leste, viveu um tempo em Bucareste, onde estudou Língua e Literatura Romena, e também Tradução Literária, até que atravessa o Atlântico rumo ao sul, no virar de 2009 para 2010, para viver no Rio de Janeiro, onde estudou [e continua a estudar, e a realizar] o ofício do Teatro. Na literatura, traduziu do romeno os romances O Regresso do Hooligan (Ed. ASA, Portugal), de Norman Manea, e Lisboa para sempre (Ed. Thesaurus, Brasil), de Mihai Zamfir. Seu livro de estreia, outono azul a sul (2018), marca sua luso-brasilidade e tem uma extensão fotonarrativa no instagram @caliboreaz — ferramenta dinâmica que complementa o livro com as imagens que o inspiraram e as que seguem precedendo novas escritas. Seus poemas foram expostos em forma de videopoemas no Hyderabad Literary Festival 2019, na Índia. Site: www.caliboreaz.com