três poemas de André Nogueira

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Poemas do livro O Presidente me quer morto (Editora Urutau, 2019)

esses filhos de uma loba

Dirigi à arquibancada
meu rugido incompreendido
para os filhos de uma loba.
Ao chegar em seus ouvidos
o clamor da minha boca,
eles saíram —
os patrícios, os plebeus,
de seus liceus, de seus hospícios
ou detrás de uma fontana.
E lotando o coliseu
para escutar a minha ira,
nem sequer a pulga coube
atrás de orelhas em abano.
Já o respeitável público
em júbilo ovaciona
o cesáreo adestrador:
“Eeeu…
sou romaaano…
com muito orguuulho…
e muito amoooor…”

Quanto a mim, fui das savanas
um temido caçador.
Da minha África querida
me trouxeram acorrentado,
e para mim mais dolorido
do que grades e grilhões
é lembrar como esse roubo
me custou a minha juba.
Esses filhos de uma loba!
E outra vez o meu rugido,
glória última, ecoou:
“Se arrebento estas argolas
na arquibancada subo,
estraçalho o domador,
mijo na porta do Senado
e de Roma tomo o trono.
No correr dos trinta anos
de meu régio de tirano
terá tempo de crescer a minha juba”.
E responderam-me os romanos:
“Vai pra Cuba!”

Nero, o imperador, fez um aceno
ordenando que soltassem na arena
a fera e o gladiador.
Ouvi rugir meus camaradas
leões de cabeça raspada,
a lamentar no calabouço
a agravada minha pena
pela hiena engravatada.
Eu clamava por socorro
mas o povo com os punhos
agitava por, supunha-se, um osso.
Implorei também a Deus
que retirasse minha alcunha
de Senhor dos animais.
Mas inflamavam-se os ânimos
e unânime ecoava o coliseu:
“Todo poder a Barrabás!”

Pensei num novo plano:
amolecer os corações,
e desarmar o rei romano
com uma revolução da paz…
Deitei com a barriga para cima,
como um dócil felino,
e levantei a minha pata
oferecendo-me aos demais.
O gladiador parou estupefato,
a multidão guardou silêncio
e Nero desmaiou como uma menina
nos braços de seus serviçais.
Ergueu-se o portão de uma garagem
e de lá saiu à toda
um andar da carruagem
em desgovernado consenso,
guinando para a direita.
O gladiador bateu com o globo
incrustado de espetos,
e esses filhos de uma loba
enfim gozaram satisfeitos
mamando nas mesmas tetas,
tudo do mesmo jeito,
mas eu levo para sempre
um golpe de globo no peito.

Maio 2016

a viúva do jornal

Com o envelopinho pelo viaduto.

No envelopinho
uma passagem para Santa Rita do Sapucaí,
um trocado para um lanche e uma coca
e o santinho, com a prece pro anjo da guarda,
que comprei numa loja católica.

No viaduto
ela me disse: “Minha história
deu notícia no jornal.
Foi quase ontem:
cinco tiros por cem conto.
Meu marido nem chegou no hospital,
já me chutaram para a rua sem um puto”.

Com o envelopinho
pelo viaduto.

Deus te livre e guarde!
Amanhã pode ser tarde…
Hoje mesmo vou trazer essa passagem.
Tua mãezinha em Santa Rita
ainda chora de saudade
e minha Mãe, que é mãe tua,
é quem te guia na viagem.
Tu acredita? Eu te prometo
que tu vai sair da rua”.

Mas na loja católica
não achei um só livreto
em que Jesus não fosse branco
e Judas preto.
E na cidade o tempo voa,
é fila no banco,
guichê da Cometa
e com o aperto da garoa
fui direto para casa.

No outro dia eu rápido saí
para cuidar da minha causa.
Alcancei o viaduto…
A passagem pra Santa Rita do Sapucaí,
a prece e o trocado para o lanche,
no envelope estava tudo.

O velhinho do sinal
segurou na minha blusa
oferecendo-me um chiclete.
“Viúva do jornal?
Não sei, jornal só uso
pra cobrir minhas canelas.
Mas na ponte do outro lado,
vai saber tu acha ela,
tem um povo, uns colchonete…”.

Quando olhei, e vi piscando a viatura,
os dois guardas com revólver na cintura,
a pobre gente recolhendo suas tralhas,
eu à toda e sem pensar atravessei,
o busão não me pegou e foi por pouco,
“Que é isso!?”, protestei
com o coração na boca.

“Como assim, o que é isso?
É meu trabalho!”, falou o polícia.
“E tu, não trabalha?
A propósito, teu nome, tua idade
e documento”, e também disse
apontando o chão de pedra:
“Este lugar é um cartão postal da cidade,
aqui não cabe essa imundice.
Agora arreda!”

Assim tomei o meu caminho,
debaixo da chuva,
amassando em minha mão o envelopinho
e engolindo a seco minha prece.
Nunca mais vi a viúva…
Mas escuto a sua voz no viaduto
como a mim ela dissesse:
“Mamãezinha em Santa Rita me espera!”
E se me lembro da mãe minha,
que é mãe dela e mãe de toda gente pobre,
já no peito o coração me acelera,
mas a blusa ainda o cobre
e macia é sobre o leito minha queda.

Roga a Deus por tuas filhas
que se enrolam no jornal,
pois ninguém delas se apieda.
Como o pão que se partilha,
rasgo em dois o cartão postal.
Raios partam essas pontes!
E aos montes caiam pedras
sobre os edredons dos maus.

Abril 2017

o presidente me quer morto

O presidente me quer morto.
E mais quarenta e seis por cento,
e meu pai, meus avós e meus tios
me querem morto sem saber.
Nem de longe lhes ocorre ao pensamento
que amanhã sob o fuzil
pode ser eu, ou ser você…

Da guarita o rosto redondo
do porteiro, acenando com a mão,
o bom velhinho joga aos pombos
na praça farelos de pão,
e conversando alegremente
motorista e passageiros,
a bordo do bonde,
que sorriem com bondade
e me respondem: “Boa tarde!”
Nem de longe
lhes ocorre
ao pensamento! —
se é esta realmente
a vontade
que eles todos compartilham.
Penso, e talvez
esteja errado,
que todos são bons,
mas quando for a minha vez
de ser levado
ao paredão,
haverá quem aperte o gatilho
e quem chore tendo entregue
o próprio filho.

Está difícil de se amar a humanidade,
e mesmo assim eu insisto,
com um misto
de terror e apatia,
e ando sem norte
pelas ruas da cidade,
a pensar que minha morte
é a vontade
da absoluta maioria.

Mas eu sei que não é isso
o que pensam realmente,
e também sei como é difícil
não ceder à sintonia
urgente do rádio,
ao ódio servido
em cada banca de jornal.
Meus queridos!
Eu sei que nenhum de vocês
me quer mal!
Mas quando for a minha vez,
já não lhes dará ouvidos
carcereiro ou general.

Outubro 2018

André Nogueira nasceu em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado cidadão brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991. Vive atualmente na cidade de Campinas. Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Tradutor, poeta, ensaísta. Autor de O Presidente me quer morto (Ed. Urutau, 2019).