em busca da terra sem mal, resenha de Dirce Waltrick do Amarante

carvao_capimGuilherme Gontijo Flores parece anunciar no seu mais novo livro de poesia, carvão :: capim, publicado em 2017 em Portugal e lançado agora no Brasil, a “terra sem mal” dos povos Tupi-Guarani, a qual deve ser buscada em vida; por isso a necessidade de migrar, de caminhar, de cruzar fronteiras, o que o poeta faz, passando por Beirute, Paris etc. Mas em vez da terra sem mal o que ele encontra é, na verdade, um mundo caótico, como o descrito em “Solo”, em que uma menina atravessa uma esquina “enquanto zunem/ centigramas de chumbo/ asfalto acima rumo a tudo/ que ela ainda considera/ chamar de terra”.

Numa das epígrafes do livro, Petxi Kisêdjê, indígena de língua Jê que vive no Parque Indígena do Xingu, diz: “neste lugar, sou índio e outro, mas falo pra vocês falo pra vocês envergonhadamente, falo pra vocês”. O poeta parece encarnar esse índio que se sente obrigado afalar, a narrar as situações cotidianas mais terríveis e absurdas: “E ele deixou quem berrava/ queimar em vão e sem combate serem cinzas/ enquanto o sol imerge e a noite roda o dia”, ou “felizes são os corpos/ daqueles mortos pelos inimigos/ que infectam águas de outros rios […]”.

Os versos tentam, à medida que avançam pelo mundo, alcançar alguma forma de “iluminação”, mas o xamã contemporâneo vê brotar diante dele, “por mágica do asfalto”, não uma flor, e sim “uma placa/ um prédio inteiro nascido/ empoeirado pelo tédio”.

A poesia atual de Gontijo Flores é política, sem abrir mão da pesquisa formal. Ela alerta para a morte de “pobres e pretos/ fuzilados pela polícia”, enquanto na “propaganda de desodorante” alguém “beija e é beijado”, como se nada impactasse seu marketing.

São muitas as vidas exemplares que carvão :: capim homenageia, numa tentativa de desobstruir o caminho: a de Roque Dalton, o poeta e ativista salvadorenho, que “foi morto nalgum canto/ pouco antes de ver/ os teus quarenta anos”; a de Bob Kaufman, poeta surrealista americano, negro, que viveu anos na pobreza em Nova York e sofreu com a perseguição da polícia, mas que, quando voltar, dizem os versos de Gontijo, as pessoas entonarão “o let my people go/ usando nuvens como alto falantes”; a da cantora negra brasileira, sempre à frente do seu tempo, Elza Soares, “a mulher do fim do mundo”; a do músico minimalista estoniano Arvo Pärt, que censura soviética obrigou a migrar para a Áustria; etc.

Num viés de autor fabulista (o poeta é tradutor de mestres gregos e latinos),são também protagonistas nessa poesia em ebulição animais inexistentes, doentes, ou fakes, saídos não da literatura clássica, mas de um delírio, como o alce vermelho cavalgado pela criança que “exibe no lombo de plástico inflado/ a possibilidade/ ainda que pequena// em seu vermelho plástico”; ou o inseto que termina cozido numa xícara de café expresso.

De repente, surge até “uma panela com patas”, e, quando parece que ela ganhará vida, remetendo à epifania ou ao perspectivismo ameríndio, o que se vê é que as patas são de um jabuti “fervido ainda vivo sem escolha”.

E ressurge a epígrafe de Kisêdjê nos versos finais de carvão :: capim: “você dizia índio & índio eu respondi/ & hesitamos perante as peles dos curtumes”.

Dirce Waltrick do Amarante é professora do Curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC, tradutora e ensaísta.

POEMA DO LIVRO

Solo

1

Prado cerrado soterra não tem corpo
a grama cresce em fúria
nos edifícios que ensaiamos
em construir nos edifícios
que preparamos por embasar
sobre edifícios que sonhamos
em erigir para edifícios
que agora tombam

erguido ao céu num rito
alegre das miradas
o AR15 entoa
e sob a cena os pés
acenam as passadas
um garoto acontece
de beijar o céu
excuse me while
a cena acaba`

2

Prata encerrada sob a terra não tem cor
a frase é velha vale pouco
perante a cara
que aparece nos jornais
velhacos das agendas
nacionais perante os pastos
que ensaiamos em sonhar

o ouro é preto e explode céu acima
nas gargantas metálicas das mídias
são hoje cento e quantos corpos
correntes nas esquinas
são toneladas de lama
a mesma sobre os rios
águas do rio ninguém bebe mais

3

Uma menina atravessa a esquina
e se concentra enquanto zunem
centigramas de chumbo
asfalto acima rumo a tudo
que ela ainda considera
chamar de terra

são clichês poesia será parca
sob a cena chumbo sem número
dos dias será fraca
diante dos instantes
metralhados nas câmeras será nula
nas feridas dos que expiram
sem sentido

4

A contagem dos corpos segue cega
na foz na fonte e nos estanques
alguém sussurra nomes como
senegal ou beirute ou meros nomes
alguém contou as pilhas pela síria
alguém mal fala porque
os anônimos se amontoam
num canto os anônimos
entoam novos cânticos
numa fumaça
são cânticos aos drones
a morte é um mestre em toda a terra
resta o carvão dos corpos

5

Minas não há mais
dali alguém responde minas
nunca houve
daqui alguém replica
o sangue é negro
e corre o sangue
e negro e chega
o sangue corre
e chega o sangue
chega e cantam
o mantra eterno
das religiões
quanto tempo
vai durar
meu choque
o sangue é seco
e sofre o manto
negro das religiões
o sangre é negro
e morre
no mantra seco
das religiões

6

Alguém volta correndo
a cena é lenta
alguém volta correndo
enquanto alguém espera
a cena é mais romântica
jovens que de pretos e pobres
ainda e sempre restam
por pobres e pretos
sempre restam
mesmo que nem tão
pobres e pretos
fuzilados pela polícia
alguém volta correndo
e num enlace envolve o braço
e beija e é beijado
a propaganda é de desodorante
alguém volta correndo
e sai beijado
por ciclones e queimadas
alguém volta correndo
as mãos se tocam num sorriso

7

Paris não é o fim do mundo
a lama explode além
e nunca pode ser a mesma
nunca entraremos na mesma terra
que sobe acesa pelo escapamento
ao raio opaco deste sol

escolas encerradas
se ocupam por garotos
que ocupam suas tardes
em descerrar as vidas
os corpos ganham corpo
frágil parco vivo
alguém procura por capim

8

Pasto surrado desterra não tem coro
se a lama abraça os braços
todos deste rio se este rio
teima e reteima em desaguar
no mar se nossos peixes
serenam sob as águas
um verso ainda

eu seria mulher da vida
eu corro nas entranhas do dia devagar
eu tenho filhos e não faz sentido
eu seria mulher do mundo
eu leio whitman para os desmembrados da manhã
eu cruzo serras e não faz sentido
eu seria a mulher do fim
eu canto quando a voz se arrasta
eu seria a mulher do fim do mundo
mas a voz não faz não chega à foz
a voz não traz não chega ao rés
a voz

9

Você constata triste

que já dinamitaram

a ilha de manhattan

talvez ainda reste voz

10

O sol no sal
alguém viu parece
alguma sauna
estalactites no concreto
estalam sobre máquinas
de costura entrelaçando
o nome sweatshop
a loja escorre o mesmo

beijamos novamente
as marcas de eldorado
achamos novamente
a terra sem mal
seguimos novamente
à terra de linchamentos

Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e leciona latim na UFPR. Estreou com os poemas de Brasa Enganosa, em 2013, finalista do Portugal Telecom. Em 2014 lançou o poema-site Troiades — Remix para o Próximo Milênio. Essas obras deram início à tetralogia Todos os Nomes que Talvez Tivéssemos. Como tradutor, entre vários outros, publicou A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (2011-2013, premiado com APCA e Jabuti).