a encruzilhada: Legba e o Saci, de Franklin Carvalho

Eu disse não e não, e ele insistiu para entrar. Contei que naquela casa, naquela noite, só cabiam mulheres, e veio o desaforo:

— Não sei para que tanto mistério, eu vejo tudo o que se passa aí dentro, para mim essas paredes são de vidro!

— Então te conformes e não inventes presepadas. Eu sei do que tua língua é capaz. Se alguém gosta de soprar mentiras é tu mesmo, filho do vento. Mas não entras, que não te deixo passar.

— Até o vento frio pode ser bom, porque esquenta os ossos gelados, velho. O vento é teu hálito. Dize: quanto ganhaste para ficar aí parado na porta, feito vigia dessas bruxas?

— Ganho o propício. Meu negócio é esse mesmo, o distinto não sabe? Tranco as portas e as estradas e as abro a quem merece. Vamos, trances tuas pernas numa só como sempre fazes, trança-as na dança, no jogo, como fazes na capoeira, ou correndo, trança-as em pó, em redemoinho. Desmancha-te, vai-te em paz.

Ele zombou da minha pressa em tirá-lo dali e disse que era estranha aquela impaciência num caduco como eu, tantas noites havia nos meus olhos, milhões delas, como milhões de estrelas, milhões de insetos sustentam cada noite única dos homens. Perguntou-me o quanto custava aquela vez, só aquela vez, deixar-lhe passar, e me ofereceu seu fumo. Tanto fez e azucrinou, até desdenhou da minha potência. Por último ajuntou que a casa era cercada de jardins e que todo mato era sua morada, então ele ali entrava quando lhe desse na telha. Eu respondi:

— Nem telha tu tens, só ares, poeira e folha, bicho do mato. — Ele se recompôs. Suas pernas, que eu mal divisava na pouca luz da varanda onde estávamos, brilharam dois cambitos retintos de menino faminto, mas logo transmutaram-se em grossas coxas e panturrilhas musculosas. O peito intumesceu como se fosse soltar asas, os braços viraram duas duras cordas e a face, ah, a face, de pele áspera e repuxada, ganhou carne e lábios e pomos e doçura e líquidos na órbita dos olhos e ali apelo. E uma aragem cuidou de vesti-lo com roupas que nunca vimos, de forma que ficou belo e atraente como um jovem que brinca nas águas, e tive que dizer:

— Desfaz, Saci, desfaz.

Fechei os olhos por um segundo e tive simpatia pelo seu interesse, e falei-lhe fluido como nós somos. O que as donas faziam lá dentro era comer os miúdos de seus maridos, fígados, rins e baço, e de outros homens do passado. Elas se serviam da banha e do sangue de outros machos modernos e ainda devoravam as orelhas dos seus avôs. Claro que havia doces e licores e cerveja de sorgo, mas o prato preferido era assado de marmanjos.

O Saci estourou no riso e eu abri os meus dentes rubros, grafites e adiamantados para aquele moço — moço por assim dizer, pois ele é também de outras eras — que não tinha nenhum compromisso ou pena ou dor pela condição humana.

Não lhe importava mesmo que as mulheres se reunissem nas cozinhas, nas vizinhas ou em qualquer outra parte para falar de seus homens. E quem há mesmo de se ralar se isso é flagelo varejeiro, de todo fundo de mercado, de toda quermesse, de mães e filhas fazendo, comendo petiscos? Outro tanto pior os homens praticam e as donas e mocinhas nunca alcançam castrá-los, o que seria até bom, por sinal.

Ao contrário, o homem mete o que tem de melhor em gruta escura que só a parceira vasculha com seus dedos, e ali deixa esquecido algumas joias, confiando nela. Nem por isso se torna mutilado. O homem aceita ser engordado e é natural que acabe assado ao sal e ao alho e devorado, e que as migalhas da sua carne amarga, queimada, caiam esperdiçadas aos ratos da casa.

O Saci queria ir lá dentro fazer o mesmo de sempre: perturbar até ser sentido, sempre camuflado. Aborrecer sem susto, ser o vento dentro de casa, desparelhando chinelos, extraviando chaveiros, desmentindo a rotina, abismando os atos mínimos, os cômodos vazios.

— A dona da casa disse que não dormiu noite passada. Foste tu o chiado no telhado?

— E eu sou morcego?

Pura desfaçatez. Ele aspirava vagar entre as coxas e os sovacos das comensais, inflar os flatos das mulheres que fofocavam na casa, roçá-las como uma pérola de suor que rolasse em suas faces.

— Repara bem, moleque, todos temos uma hora para não vermos. Isso se chama mistério, ou a hora de nosso sono, ou a vez da paz alheia.

Ele foi se afastando cabisbaixo, o seu vulto escurecendo no breu da estrada em frente, e adiante me chamou. Era longe e era perto, era assim uma encruzilhada e lá mesmo sussurrava, um escuro tão grande que a vista não nos servia.

— Eu lhe dou a touca que uso, minha tiara e coroa, dou-lhe um cachimbo cheinho e o poder de com esses dois cegar os que te perseguem.

Confesso que, seduzido, cheguei-me aonde ele estava e me envolvi na artimanha. Permaneci hora inteira detido naquela farra. Recusei os presentes, cuidadoso no que ponho à cabeça, porém a amizade parecia sadia e a nossa alegria, viva. Quase uma agradável companhia.

Mas o maldito é mesmo vadio e ardiloso. Àquela hora eu não falava com homem, nem com bicho nem com boca igual à minha. Não! Era só cuspe largado no chão, sua saliva assombrada, deixada na estrada, pronta para conversar e distrair. Ouvi no ar aquela risada de quem já não estava ali, era só um eco cretino, uma pilhéria de quem crê que enganou. Perguntou de novo, a voz já distante:

— Por que você se senta à porta das mulheres donas?

— Porque me deram de comer antes que comessem elas próprias. Porque me satisfaz ter essa primazia. É algo que tu tanto querias… Até parece que nós somos irmãos. Mas não é da tua natureza servir, não sei porquê. Não crias limo nem fazes parcerias.

Ele me respondeu que não queria ficar como eu, sempre na rua, sempre vigilante, pois com seus ciscos invadia as frestas e ele mesmo era cisco, era poeira, era vento malsão para levar terçol e soluço e derrame e loucura. E se quisesse, quando quisesse, trazia o último suspiro de um moribundo para fora das janelas, para dançar em virações.

Ora, se o Saci esperava desviar minha atenção da porta que eu guardava, viu-se desapontado. Sou o dono da encruzilhada. Eu estava no mesmo lugar do começo da conversa. Eu, que entro e saio do passado, senhor dos acessos, desarmei sua trapaça.

Mas ainda teve labuta, ainda teve sedução. Ele se transmutou em menino, em galego e em engano, apareceu mulher formosa, e tudo sem resultado.

O dia surgiu, a festa acabou e as donas saíram bêbadas, entre risos, abraçadas. Ainda estavam elegantes, vestidas de couro e cetim e possuídas de ouro, brilhantes na aurora e infiéis a tudo, aos seus maridos e aos pais, as pernas bambas.

Lá se iam as tontas e do nada, do nada, apareceram malandros e as acudiram com a fumaça dos seus pitos. Eram muitos os molecotes, como praga de gafanhotos, e as doidas assim gozavam, envolvidas, tão alta a nuvem de fumo que parecia a terra arrotando. Elas sumiram no vento, como ao vento tudo some, descuidadas de conselhos.

Não me esqueço daquele agosto: era a noite de São Bartolomeu perseguir o Cão.

Eu parti com meus fazeres para outras portas, para outras quinas, para outras fomes. Também para penetrar escuros que não quero confessar.

Franklin Carvalho é jornalista e autor dos livros de contos Câmara e Cadeia (2004) e O Encourado (2009). Em 2016, o seu romance Céus e Terra venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Social do Comércio (Sesc), e em 2017, o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Autor Estreante com mais de 40 anos. O autor participou da comitiva brasileira na Primavera Literária Brasileira e no Salão do Livro de Paris (2016), eventos realizados na capital francesa, e foi palestrante na Feira do Livro de Guadalajara (México — 2017) e na Festa Literária de Paraty 2018.