um universo circular no fluxo das águas, resenha de Nuno Rau

capa_wandaLA liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019) será lançado amanhã, 16 de fevereiro, a partir das 19 horas no Patuscada — Livraria, Bar e Café em São Paulo.

1.

Adentrar um bom livro de poemas pela primeira vez nunca é uma aventura simples — é como entrar num espaço desconhecido que guarda surpresas em suas paisagens. A poesia convoca a um posicionamento do leitor, daquele que precisa ativar, com sua energia, o circuito impresso sobre o qual se assenta o conjunto de poemas, para, assim, atualizá-los em relação a si mesmo. No meu caso, considero instigante a busca sobre o que moveria a voz gravada nestes versos, que determinações a atravessam e o que ela nos abre em sua potência. A liturgia do tempo é um livro com muitas entradas, como se inúmeros pequenos afluentes nos levassem todos ao rio principal que é a poética de Wanda Monteiro, no exato momento em que ela se encontra, este aqui e este agora (sempre em curso contínuo). Wanda é uma poeta que nasceu em meio às águas da Amazônia, nelas se banhou, em seu entorno cresceu e delas carrega a marcante influência que seus poemas anunciam, uma poeta que já nos deu livros maduros e prenhes de questões como Anverso e Aquatempo, igualmente marcados a um só tempo por essa regionalidade e pela universalidade que nos aproxima de seus caminhos internos.

Interrogando essa voz, ela nos conta que roga pela “escuta de alguma voz/ voz que venha de todas as vozes” que enumera, então: a dos elementos — vento, céu, terra, fogo, águas —, a dos seres — as “coisas miúdas” —, a do mistério da vida e da morte, do sagrado e da ancestralidade. Estamos postos diante de uma cosmologia que se esboça por movimentos sutis, e precisamos interrogar a essa “voz do céu que guarda todas as vozes” por quais devires humanos (e, sem dúvida, também supra-humanos) seremos levados. Buscamos pistas, uma vez que estamos em meio a uma densa mata na qual pegadas são recobertas pelas folhas que caem incessantes, e atravessadas por rastros de outros animais, quando não lavadas pela chuva ou pelas aluviões delas decorrentes.

Não bastassem, como vimos acima, as interrogações acerca dos fluxos que atravessam e constituem esta poética (a um só tempo centrais e marginais em relação ao debate contemporâneo da poesia), observamos que o livro é construído por dois espectros de fala que, dialeticamente, não se mesclam, antes se diferenciam no diálogo que articulam entre si, comigo e com você, atônito leitor — é necessário desenvolver mecanismos para a escuta destas falas, localizar suas pistas. Um sinal nos acena da epígrafe: Heidegger se interroga sobre semelhança e oposição entre poesia e pensamento; entenda-se aqui pensamento, na mira do filósofo, como o responsável pelo triunfo da técnica na sociedade moderna e, por conseguinte, pela conversão da vida em simples procedimento burocrático dentro do aparato científico-tecnológico do Estado, tendo como resultante o esquecimento do ser. A poesia seria, então, esse caminho para o retorno à experiência original do pensamento — e esta experiência original é exatamente o que se persegue em A liturgia do tempo, por meio da própria linguagem e do lugar para onde ela se volta como ferramenta de representação e reflexão: ela busca lembrar o esquecido, isso que perdemos na contemporaneidade, no mergulho da vida urbana e, assim, superar essa crise e procurar reconstruir a experiência original do pensamento. Eis o abismo de que nos fala o filósofo, eis o abismo (ou um deles) que a poesia busca sobrepassar.

Tomando ainda a questão levantada pela leitura da epígrafe, podemos pensar sobre a querela entre Heidegger e o nominalismo linguístico da primeira metade do século XX, especialmente com Saussure e Wittgenstein. Simplificando os termos deste debate para o contexto de nossa apreciação de A liturgia, podemos tomar do nominalismo linguístico o pressuposto de que o ser humano está diante de um incontornável esquecimento do ser, do qual a arbitrariedade do seu uso social e científico é o mais recente sintoma. Isso ocorre porque estamos imersos numa nuvem de signos, todos autorreferentes e dotados de legalidade própria e independente, e não fundados numa forma lógica ou na própria substância do mundo.

No lugar de buscar a superação da crise acima detalhada, reconstruindo, na medida de seu possível, a experiência fundante do pensamento tal qual se deu na Grécia antiga, perdemos o pouco potencial reflexivo que ainda possuíamos porque nos dedicamos a compreender e praticar as regras e a arbitrariedade do signo. É devido a isto que, para Heidegger, o nominalismo linguístico da primeira metade do século XX é a forma mais recente, mais jovem, do estranho ou do estrangeiro se manifestar, ou seja, é a mais recente manifestação do esquecimento do Ser — caberia a nós, como alternativa, lembrar o esquecido: para Heidegger não são o cientista ou o administrador do Estado os cidadãos capazes de realizar a experiência da dignidade da palavra. Para tanto, só o poeta.

2.

Aqui tocamos o ponto de articulação entre a poética de Wanda Monteiro e a questão da linguagem, sua arbitrariedade. A poesia, como queria Heidegger, tenciona retomar o caminho até o Ser, ambiciona cumprir o arco entre o texto e a existência, de modo que nos reconectemos com esses princípios. Os poemas de Wanda nos aproximam desta ponte sobre o abismo pela via do que foi transmitido pelos povos ameríndios às populações ribeirinhas do Pará, determinando sua visão de mundo e, portanto, sua relação com a linguagem. Explico: desde que os gregos antigos disseram pela primeira vez a palavra physis (materializaram no próprio movimento do ar sendo soprado por entre os lábios que formam uma espécie de túnel estreito (pela forma da pronúncia), e articularam um vínculo entre o fenômeno descrito pela palavra e a materialidade de sua fala, que remete ao próprio movimento do ar (como se fosse um vento, fenômeno meteorológico) que, para aqueles gregos era uma substância que preenchia todo o universo, já que em sua forma de compreender o mundo não havia o vácuo; este “preencher” o universo explicava, entre outras coisas, a própria possibilidade e ocorrência dos movimentos dos seres e dos objetos. A forma com que os ameríndios articulam a fala e a relacionam com suas cosmologias não é, estruturalmente, tão diversa, e as palavras são sinais desta ligação originária que, para nós, está perdida pela forma arbitrária como aprendemos e reproduzimos a língua. Os poetas trabalham com uma espécie de arqueologia deste fenômeno primeiro, irremediavelmente perdido, e para quem, como Wanda Monteiro, tem uma relação com este mundo é impossível não espelhar em sua produção elementos atávicos.

Isto pode ser observado nas palavras e conceitos que comparecem nos poemas — por exemplo, o “solo”, que ora aparece como chão firme, ora como elemento fluído e mutável. É assim mesmo que as imagens da natureza afloram nos poemas de A liturgia do tempo, referindo o modo como a própria formação antiquíssima daquelas planícies se deu pelo carreamento de solo nas águas pretas dos rios. São muitas as águas por toda a Amazônia, aliás, um leque de formas líquidas que vai das águas claras às águas pretas, passando pelas águas míticas e pelas águas ancestrais que amnioticamente nos transmitem conteúdos. Os solos em meio a tantas águas reais e simbólicas não poderiam ser solos absolutamente estáveis, e se mostram móveis e dúcteis, passíveis de serem levados pelas aluviões que, desde o grande dilúvio, são mitos fundadores de nossa cultura — presentes também nas cosmologias ameríndias, como nos mostra Lévi-Strauss nas Mitológicas. Ressalta da leitura deste livro que a poeta trata reiteradamente da necessidade (ou da ausência) do chão, mas ao ler temos que ter em perspectiva que esse chão primevo é em tudo mobilidade e impermanência, além de arquivo de memórias densas.

E eis que Wanda nos apresenta que, em sua cosmologia, o corpo como a soma destes dois vetores, a impermanência absoluta das águas e a permanência provisória do chão, e desta dualidade extrai uma tensão que ilumina a leitura dos poemas. O que unificaria no corpo essa dualidade? Não poderia deixar de ser o tempo, intervalo em que se estendem a permanência e a impermanência, e nada nesta poética é gratuito, porque o solo levado pelas águas até formar novo chão nada mais é do que a matéria da memória que estes poemas nos apresentam, memória que nos vêm segundo o ritmo mesmo do fluir destas águas. É deste jogo na linguagem que nasce a liturgia, a necessidade do trabalho sagrado sobre a matéria do tempo, esse fluxo inapreensível, e seu conteúdo milionário de significados. Cabe aqui compreendermos melhor os sentidos do termo liturgia.

A palavra liturgia tem origem na língua grega e é composta de dois elementos: leitos (público) e érgein (fazer). Juntando estes dois pelo radical e acrescentando a eles o sufixo formador de substantivos, temos leit-o-erg-ia ou leitourgia. Leitos deriva da palavra léos, forma dialetal de láos, que significa povo. Érgein é um verbo que caiu em desuso na época clássica, mas que sobreviveu no substantivo érgon (trabalho). De leitourgia derivou litourgos (servidor público) e o verbo litourgein (exercer uma função pública). De láos (povo) se originaram as palavras laico, laical, leigo. Assim, liturgia, liturgo, lutúrgico, laico, leigo, laical pertencem a uma mesma família de palavras, pois todos procedem da raiz láos ou léos, povo. Mas liturgia passou a ter também, em nossa cultura, um significado religioso: liturgia é o serviço público oficial da Igreja e corresponde ao serviço oficial do templo. Abrange, pois, todo o conjunto de funções oficiais, os ritos, as cerimônias, orações e sacramentos.

Não deixa de nos chamar a atenção o fato de que o nome-síntese deste novo livro de Wanda Monteiro articule estes dois sentidos da palavra liturgia e a ponha em relevo: o laico e o sagrado como faces de uma mesma coisa, e podemos supor, sem muita chance de equívoco, que a liturgia é, para a poeta, o próprio poema — nele se irmanam estes dois aspectos da existência. É por isto que a voz que nestes poemas fala não pretende “deixar de comover-se com o mundo”, o mundo que vem na aluvião de suas sonoridades e sentidos, e, deste modo, nos co-move.

Nuno Rau é poeta, professor de história da arte e arquiteto, tem poemas em diversas revistas e nas antologias Desvio para o vermelho (13 poetas brasileiros contemporâneos), Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Edita revista de literatura mallarmargens.com desde 2012, e em 2017 publicou Mecânica Aplicada (poemas), pela Editora Patuá, que foi finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura.

TRECHO DO LIVRO

A linguagem poética talvez seja o último refúgio da humanidade. A escritura poética restará — mesmo — como tesouro arqueológico da remota paisagem dos sentidos e percepções do humano.

em campo aberto de afetos
ferir-Se
no deslimite

sob
êxodo
transpor fronteiras
===
pisar no auto-exílio

no exato quando do entreato
o tempo nos toma de assalto
parte-nos ao meio
aloca-nos fronteiriços
imersos no espanto

olhos no passado
olhos no futuro
o presente carregado de impossibilidades

I

em leito outrora fecundo
línguas ondas quebravam sonantes
ao toque da lira
no-ágora-do-outrora
só há espectros
mudo-surdos
habitantes de um deserto
seco e demente
de palavras

II

no gargalo da garganta
ergue-se um mausoléu de asas
em santo sepulcro de palavras aladas

III

que presságios trás a mudez
do flagelo verbo
fugitivo de um poema em chamas
?

Wanda Monteiro é escritora e poeta, uma amazônida nascida às margens do Rio Amazonas, no coração da Amazônia, em Alenquer, Estado do Pará. Reside há mais de 25 anos no Rio de Janeiro, mas só se sente em casa quando pisa no leito de seu rio. Seu livro A liturgia do tempo e outros silêncios (Editora Patuá, 2019) será lançado amanhã, 16 de fevereiro, a partir das 19 horas no Patuscada — Livraria, Bar e Café em São Paulo.