três poemas de Julia Raiz

p/ raphael sassaki

posso dizer que a tarde passou a estar
estranha da hora que você ligou
pra encomendar um poema eu te
pago você gritava eu te pago
e não é pouco desliguei
na sua cara menos
pela grosseria e mais porque o sinal
abriu e vinham na minha direção três
freiras em azul imaginei suas unhas
sujas alisando a costura do hábito celeste elas
cegas pra sua imundície me olharam com caras
de servas como se eu fosse confúcio e tivesse
estudado em king’s college dou-lhe tapas
na cara já que não sou capaz de bater
em você tá aqui o poema cisne de fraldas
foi em abril eu me lembro
embora em meu espírito
fosse dezembro a vida recomeça
quando beijo meu marido
na boca e isso o mata minha voz
desfez-se em lágrimas
pegou-me a mão há uma frase
no breu de confúcio que diz
jiang-xin-ói-xin

alacrã

ontem sai pra beber com um rapazinho com idade pra ser teu filho talvez ele seja mesmo tinha os mesmos olhos de gente que se espreme diante da imensidão do mar vermelho lembro que você chegava mais uma vez carregando o guarda-sol arco-íris girando tão rápido que me prendia num pesadelo libidinoso e branco seu filho tem uma tatuagem da minnie nas costas consigo ver bem desse ângulo como uma ave de rapina um olho nas costas outro em você criança passando na calçada puxando o braço desta que te leva pelo punho olha ali a bruxa no vidro você quis dizer mas o assombro calou a tua linguinha de trapo seu filho se chama q. e depois dessa noite ele vai procurar maneiras variadas de me agradar tem no fundo da mente uma receita de bloody mary sem manjericão que menino mais estúpido angela você fez um péssimo trabalho.

s/título

Me vejo anos atrás no cabo grego de Sunião
doendo o pé infeccionado, Filoctetes/São Sebastião
no corpo de mulher, mancando longa trilha de rastros,
apoiada braço esticado sobre a colina de um mar
no fundo as rochas rubras onde uma onda tubo
escandalosamente branca me disse que outra arrebentara,
imagino a força da água naquela altura dos sonhos,
sabendo que a queda deliberada não é minha missão,
e ainda assim o tempo todo nutrindo, medindo com o dedo a ferida.
Bom, isso também é mais uma coisa que já foi. A mulher
que ninava o próprio sofrimento morreu. Sou sua filha.
Amo a colcha de cicatrizes com a qual ela me cobre
e ainda assim quero seguir com você desde aqui
lutando contra a tentação de fazer da dor uma carreira*

*entrei na casa da adriana rica e tomei à força

Julia Raiz escreve e é professora no cursinho “tô passada” do Transgrupo Marcela Prado. Faz doutorado em tradução, ensaio e crítica literária feminista. Edita os blogues literários totem & pagu e pontes outras. Seu livro de estreia diário: a mulher e o cavalo saiu em 2017 pela Contravento Editorial.