O CAMINHO ANIMAL
— o cachorro distraído que trotava livre na rua de repente volta voando seguido de perto por um velho veículo trêmulo
— o inseto prateado aguarda em pé na borda de uma camélia como se ela fosse uma caverna rubra
Então salta para trás
O CAMINHO CELESTIAL
— a escada de caracol é levada pela caminhonete veloz por uma estrada ziguezagueante como um saca-rolhas que apontasse o afiado bico torcido para o céu azul
— depois que o aviãozinho passa buzinando atrás das palmeiras imóveis da praia surge no céu cinzento a longa faixa azul ondeante que ele arrasta
O CAMINHO ASSOMBRADO
— as folhas caem (ou se jogam) dos galhos como se a brisa quase nula fosse súbita ventania
— depois de rodopiar no ar agitado o saco de plástico gruda numa grade de ferro onde fica parado feito uma ave que tivesse feito um pouso aprazível
O CAMINHO RUDE
— a grade do jardim é arrancada pelo mar
arrancada e logo colada por ele no mesmo lugar
em pé
e apenas úmida de sereno
— o mar dá um chute no portão de alumínio
mesmo sem tocá-lo
mesmo sem salpicá-lo de espuma
O RIO DOCE
— quando ligo de madrugada o chuveiro o som de um helicóptero se aproxima da casa e no instante em que a água molha o piso uma luz varre os azulejos da parede
— no domingo de manhã sem sol o velho barco amarelo se afasta rápido sem ruído enquanto outros
escuros
acionam os motores indóceis imóveis na água trêmula
Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista-MS e vive atualmente em Florianópolis-SC, onde leciona literatura na Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC. É poeta, contista, dramaturgo, ensaísta e tradutor. Publicou, entre outros livros de poesia, A idolatria poética ou a febre de imagens (Prêmio Biblioteca Nacional 2017) e Trio pagão. Lançará dois novos livros em 2019: N descritos com rimas (poesia visual) e A filha da figura (novela gráfica). Traduziu, com Gordon Brotherston, o poema maia PopolVuh e a crônica histórica A retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, escrita originalmente em francês. Publicou, entre outros ensaios, A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai. Como dramaturgo, reuniu três obras satíricas no volume As emas do general Stroessner e outras peças. Colabora no jornal O Estado de S. Paulo.