cúpido e pungente, de Natália Zuccala

1.

Eu tenho uma ardência na boca que só passa quando eu mordo, mastigo, quando eu engulo, como. É na garganta. Chega até a língua. Às vezes dói. Principalmente consome, me consome. Por isso tenho fome, tanta. E mordo. Pra não levar mordida. Como, engulo. O tempo inteiro.

Tenho vontade de morder coisas redondas, principalmente, como algumas frutas. Maiores como o pêssego. Menores como a uva. Mas não só. Não. Há muitos objetos esféricos. Bolas, por exemplo. Bexigas. Balões. E seios. Lâmpadas. Dá vontade de colocá-las quentes na boca porque a comida aquecida é mais gostosa, mas não pode, queima. Então eu coloco fria imaginando que é quente. Não posso, porém, mordê-las. Porque uma vez eu fiz isso e rasguei o céu da boca. Foi um pouco gostoso mas eu tive que ir ao médico, ao hospital e. Eu não gosto. Eu prefiro engolir do que ir ao hospital. O problema é que eu ainda lembro do gosto ferroso e da sensação do corte no palato e tenho vontade de rasgar a pele e sugar meu próprio sangue. Alimentar-me de mim. Mas eu me controlo. Eu consigo me controlar. Ocasionalmente.

E não se trata só de morder. A sensação boa não vem só de mastigar. Não só, mas também, só de algo sendo triturando entre os dentes. Eu experimento pelos meus dentes tantas sensibilidades. Acho às vezes que tenho os dentes como a pele.

Mas não é só de triturar, macerar, amolecer que eu gosto. Transformar uma matéria dura numa substância mole. Mastigar osso até transformá-lo em carne. Às vezes tenho a ânsia de mastigar meus próprios dentes entre meus próprios dentes. Arrancá-los. Eu engoli todos os meus dentes de leite quando era criança.

Nem mesmo só a sensação de umidificar com a língua. Passar a língua nas coisas em todas as coisas que. Existirem. Passar a língua em algo é uma das sensações mais deliciosas que eu experimento. Assim como os lábios. Tocar com a ponta dos lábios. Mas não é só isso.

Eu gosto também de sentir algo descendo pela minha garganta e, principalmente, gosto muito quando as substâncias chegam na minha barriga. Quando chegam na minha barriga e vão se acumulando é tão bom. Isso de se satisfazer é tão raro. Eu quase não sei o que é isso.

O problema é quando acontece o contrário disso. Quando a barriga ronca e está vazia e não tem nada nela e dói. Quando parece que silva o estômago e seria possível passar um furacão por lá, é tão ruim e dói tanto. Arde. Cria feridas. O suco gástrico me devora desde dentro.

Pra evitar esse tipo de coisas eu como. Eu como o tempo todo. Não quero não posso me faz mal lidar com a fome.

2.

Tenho tanto desejo de enfiar as coisas pra dentro de mim de. Sentir dentro de mim que. Às vezes dá vontade de colocar pra dentro usando outros buracos. Enfiar comida no ouvido. Objetos pelas narinas. Mastigar com os olhos. Com todos os olhos. Sorver pelo umbigo. E criar ainda mais orifícios pra enfiar mais pra dentro de mim.

Eu tenho vontade, já tentei, não deu certo. Tenho vontade de me furar em várias partes do meu corpo que parecem, mas não são, orifícios. Isto é, de criar mais fissuras porque as que eu tenho não são suficientes. Como nas axilas e o espaço entre os dedos do pé. Por que não há buracos ali? E na batata da perna deveria haver furos. Não sei por que Deus não fez no corpo mais buracos pra introduzir. Seria melhor mas seria mais difícil manter-se satisfeito, Deus. Escreve torto por linhas retas.

E se houvesse um buraco no pé e fosse possível comer por lá, eu enfiaria umas laranjas umas mexericas um abacaxi e sugaria com a sola o suco o sumo a seiva ácida. Sentiria o gosto do piso da areia do asfalto da terra. Pelo buraco do meu pé. Só de falar já me dá. Muita vontade. Orifícios cavidades nas coxas nos braços nas mãos.

3.

Deus também errou em não permitir que engravidássemos eu. Queria muito poder engravidar estar. Cheio de outro ser humano. Gerar alimento pra essa outra pessoa que vai. Crescer dentro de mim e crescer de mim mesmo. Essa pessoa que vai comer a minha carne. Pra fazer sua própria carne. Eu queria tanto, mas não posso. Eu. Além disso, tenho menos buracos que elas. E, em vez de poder enfiar mais coisas em mim, eu sou obrigado a colocar nos outros. Queria não ter de colocar nada em ninguém e somente em mim criar e criar orifícios.

Tenho desejo de cortar meus dedos fora porque eu tenho medo de introduzir os dedos nos outros. Nada meu que possa ser inserido em alguém e me agrada. Os dedos do pé também me incomodam. Na verdade me agradam somente na medida que entre eles há um espaço um vão uma fenda quase um.

E eu temo o dia que a terra há de tragar-me. eu passo a vida evitando esse dia. Ensaiando pra esse dia. Todos os dias eu treino pra que, no momento em que eu morrer, ao invés de ser deglutido, eu degluta. Essa será minha única peripécia a minha única obra-prima.

Hei de engolir, comer, destruir a terra. Muito antes que ela me engula.

Natália Zuccala é contista, dramaturga e professora. Formada em Letras pela Universidade de São Paulo, dá aulas de Língua Portuguesa e Literatura na Escola da Vila. Suas peças A e Fenda foram montadas pelo coletivo de dramaturgos Antessala, do qual faz parte. É autora do volume de contos Todo mundo quer ver o morto (Ed. Patuá, 2017).