primeiro capítulo do romance ‘A ária das águas’, de Luanda Julião

aria_das_aguasA ária das águas (Editora Patuá, 2018)

Meados de abril:

Quando a campainha tocou, interrompendo o silêncio que pesava no sofisticado anfiteatro e anunciando o prelúdio da apresentação, um estremecimento percorreu as almas das mais de quatro mil pessoas que aguardavam o início da Auferstehung, a Segunda Sinfonia do compositor alemão Gustav Mahler. Imediatamente, sob uma luz discreta, o maestro Paolo Savina surgiu no cenário e em passos silenciosos caminhou até o pódio. Instantes depois, as primeiras notas soaram, invadindo a plateia como um vírus que se propala no ar.

De costas para a plateia no alto do estrado, com os olhos fechados e a expressão facial tranquila, o regente fez os primeiros movimentos. Gestos suaves e precisos da batuta orientavam os arcos das cordas. Um arquear das sobrancelhas exigiu a execução dos fagotes, depois, gestos mais acelerados ditavam a entrada da percussão e do sopro. Paolo é mestre, sabe que na regência é o corpo quem fala e a música quem obedece e é desse jeito que ele conseguia extrair da orquestra sem qualquer titubeio um som vibrante e hipnotizante: a música, essa substância ressonante que através de ondas penetra a alma, comovendo-a e enlevando-a.

Ingressava nas primeiras notas do Allegro maestoso, quando sentiu a respiração difícil, ofegante. De imediato, Paolo julgou ser uma vertigem inesperada. “Deve ser a emoção causada pela música”, pensou ele. Mas logo em seguida lhe veio à mente a lembrança do mal-estar que o atormentava nos últimos meses. Uma indisposição que começara nas últimas semanas tão silenciosa quanto a batuta com que ele comandava a orquestra, mas que pouco a pouco aumentava sucessivamente e descontroladamente. Um incômodo no corpo que o maestro de início julgou trata-se de uma labirintite ou estafa por excesso de trabalho, como se o seu a matéria corporal recuasse diante do esforço exigido pela arte, pedindo a diminuição do ritmo do trabalho. “Mas não posso diminuir a marcha, estou em plena turnê internacional. Tranquilizantes e analgésicos devem conter esse mal-estar passageiro. Sempre tive uma saúde de ferro”, concluiu ele, enquanto suas mãos conduziam os instrumentistas, embora esse pensamento no momento soasse a si mesmo um pouco retórico, pois há anos ele não visitava um médico.

Paolo tentava se concentrar na partitura que sabia de cor, mas as frases musicais e os compassos pareciam ter dificuldades de se iluminar no quadro escuro da consciência. Seus gestos saiam imprecisos, pareciam ignorar a intensidade da obra. A partitura dizia crescendo, mas seus gestos indicavam para descer, uma passagem doce se tornava violenta com os seus acenos. Essa imprecisão nos movimentos irritou os músicos, os quais imediatamente julgaram que mais uma vez o maestro resolvera interpretar a sua maneira, o que para eles significava de maneira teatral e atrapalhada, a obra. A maioria deles era contra interpretações e firulas. Inclusive nos bastidores e fora dos holofotes, os comentários entre eles, era a de que o maestro era muito prolixo. E diante da prolixidade da batuta que naquela apresentação estava fora do roteiro, os músicos não tiveram outra saída a não ser ignorar Paolo. E foi justamente o que eles fizeram, cada um regendo-se a si mesmo.

Paolo de repente abriu os olhos (coisa rara em suas apresentações públicas). Pensava que talvez assim, com os olhos bem abertos, a vertigem e o mal-estar cessariam. Mas se enganou quando se deparou com os noventa e sete músicos que ele regia, parecendo dançar desajeitadamente na sua frente. Paolo queria gritar, insultá-los, impor sua vontade aos instrumentistas, mas sua voz não saia, sua a língua não se movimentava, nem obedecia aos seus comandos. Sua percepção embaçada, não conseguia mais distinguir corda, sopro, percussão e coro. Violoncelo, tambor, oboé, trombone, piano, violino, todos os instrumentos da orquestra haviam perdido seus relevos e contornos. O maestro fechou os olhos novamente e sentiu que algo de terrível estava acontecendo. Trêmulo, seu corpo não obedecia mais as suas vontades, como se não lhe pertencesse mais. Sentiu o peso da própria carne e sem conseguir conter-se, desmaiou diante da plateia.

Paolo Savina ainda não sabia, mas assim como uma pedra, quando atirada com força, levanta ondas num lago calmo e tranquilo, um câncer chegava a sua vida.

Luanda Julião nasceu em São Paulo em 30 de junho de 1982. Atualmente cursa doutorado em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos. É professora de Filosofia e História numa escola estadual no bairro do Ipiranga, na capital paulista. Publicou pela Editora Patuá, em setembro de 2018, seu primeiro romance: A ária das águas.