três poemas de Renan Porto

uma viagem à savana
Para Catherine

Para chegar naquele cerro destampado e íngreme
não se viaja sozinho. Dentre as elevações pedregosas
que os pés tateiam em busca de apoio
e as mãos — quão melhor seriam
se cobertas de bronze? — deslizam as paredes rochosas,
enquanto os olhos, por sua vez, calculam cegamente
o próximo passo ignorando o abismo.

Ora, por que se meter entre as fendas deste declínio?
Mas, meu amor, quem questionaria a lógica de um clavicórdio
quando tocado pelas mãos certas? É a força do som que nos eleva
e não o grito o que nos derruba. E se com nossas quatro mãos atadas
costuramos entre nossos dedos as bordas opostas do Pacífico,
O que não fariam nossos antebraços alavancando-nos
de pedra em pedra?
Mais forte é o espanto de ver do alto
o destino.

O que fazer no alto de um monte,
no seu cume pontiagudo,
se não ver de longe todo o caminho ainda a percorrer?
Do alto deste cerro avistamos a savana.
Quão raro é conquistar sob os olhos seu encanto
com suas árvores espaçadas pelo sol
sua terra coberta de cobre
e seus leões com torso de sabre
Qual deles teria entre a juba os olhos turvos de sonho
e a vítrea retina inebriada de luz?
Qual martiriza entre os dentes o tenro peito de um acauã
que no entreato de sua devoração murmura
seu ralentado canto ao ver tua imagem esvanecendo
entre as vibrações vermelhas do ocaso

a escrita diante do espelho

escrever como suicídio em potência, virtual e inatual, do sujeito petulante. quem no fundo no fundo pretende ser lido 2 mil anos depois. já sem mundo nem leitores nem gente também estúpida. se um texto sobrevive milênios é porque respondeu tão bem ao seu tempo que passou a ser um componente da história. “escrevo para apagar meu nome”, Bataille. neste momento escrevo senão para que minha respiração volte ao normal. fugido duma cabine de biblioteca onde meus pensamentos tumultuavam. milhares de ratos tentando fugir por um cano onde só passava um por vez. mordiam reciprocamente suas caldas, nucas e orelhas e a única coisa que passava era o sangue rico em leptospirose. eu era cada rato e o sangue e a bactéria. leptospira interrogansa. a escrita zerada em Artaud: pra que, por que, como, o que escrever quando toda escrita é porcaria. numa tarde de sábado abro a porta e me deparo com uma andorinha que pendulava entre a vidraça e um grande espelho na saída do meu quarto. sem nenhum acanho ou temor metia a cara no espelho tentando lançar seu corpo para outra realidade. percebeu que não passava de uma repetição e fugiu pelo corredor. lembrei do meu gato quando filhote que de frente pro espelho atacava sua imagem refletida. escrever como destruição de si. encarar-se como outro e tentar feri-lo. adentrar a mata à noite sem lanterna e caçar cada identidade e espancá-la. dormir sobre raízes tendo uma pedra como travesseiro. quando o primeiro raio de luz secar a baba no pescoço, buscar os restos e vesti-los como uma nova pele. escrever inescrupulosamente como experimentação de si. santificar a escrita. pois para isso servem os santos: denunciar sutilmente as consciências tranquilas do seu rebanho para quem quer devorá-lo.

maquinação do poema

desatado do mundo
significante de si
o poema intervém:
máquina de transmutas
peregrino no deserto
disposto às tentações de satanás:
I: negado o pão, a pedra vira arma
II: aceita o império para derrubá-lo em pedrada
III: precipita-se alheio aos anjos e morre.
cheio do espírito seu cálice transborda.

recusa do paraíso
desce ao hades para
ser o inferno do inferno
dos contos de canterbury

ressurreto não sobe aos céus
não deixa missão nem discípulos
servo de si lava
seus próprios pés e segue
com sua gagueira fazendo o milagre
das transformações incorpóreas
das coisas do mundo

Nota do autor: Os poemas “A Escrita Diante do Espelho” e “Maquinação do Poema” foram escritos em 2015 e revisados no início deste ano. Embora não tenham entrado no livro recém-publicado, O Cólera A Febre, são poemas que anteciparam a criação dos poemas deste livro e demonstram a concepção de escrita poética e o tipo de busca que resultou no livro.

Renan Porto, baiano de Jequié, é ensaísta e poeta. Escreve ensaios que perpassam estética e política, filosofia e literatura, abordando temas como as relações entre corpo e tecnologias, transformações do capitalismo contemporâneo, etc. Está concluindo o mestrado em Filosofia do Direito na UERJ com uma dissertação sobre ética e justiça a partir do Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa. Publicou poemas nas revistas Escamandro, R. Nott Magazine, Libertinagem e Zunái. É autor do livro de poemas O Cólera A Febre, que foi seu livro de estreia publicado em 2018 pela editora Urutau.