os gatos, de Antônio LaCarne

Burroughs escreveu sobre gatos. Bukowski escreveu sobre gatos. E quem sou eu para escrever sobre gatos? Borges disse que os gatos aceitaram o amor desta mão receosa. Hemingway afirmou que um gato tem honestidade emocional absoluta. Poe era amante de gatos, ele e sua esposa (que na verdade era também sua prima) tinham uma chamada Catterina. Eu gostaria de poder escrever algo tão misterioso quanto um gato — pensou Poe, distraído, olhando para o céu.

Mas a narrativa aos pedaços sobre o mistério felino continua:

Os gatos enxergam o mundo com os olhos mais sinceros e bonitos do mundo.

Eles não sentem ciúmes de nós, nós é que sentimos ciúmes deles. Eles nos abraçam, nos beijam e nos amam discretamente. Por um milésimo de segundo, sentimos e somos mortificados pelo seu amor. Gatos repelem nossas infâmias, nos ensinam a ser quem deveríamos ser, e nos julgam se erramos na primeira tentativa.

Eles querem dormir em nossas camas, exigem comida e água como deuses que devem ser atendidos num piscar de olhos. Em outras dimensões, eles foram seres sensitivos e carregam consigo até hoje certo ar de imponência mágica que deve ser reverenciada.

Os gatos também são bichinhos de pelúcia com vida. Suas patas são plumas sobre nossas barrigas, mas quando sentem raiva, mostram os dentes e as plumas se transformam em garras que deixam marcas e rasgam a carne. Eles balançam o rabo quando estão felizes e impacientes. Eles nos ignoram várias vezes por dia. Eles têm a certeza de que nós os amamos ou que deveríamos amá-los em altas proporções que só os gatos entendem.

Quando eu era criança, minha avó tinha um gato preto. Quando eu era criança, tive uma gatinha branca chamada Cindy. Ela era muito magra e adorava subir em árvores. Eu também era muito magro e usava óculos de lentes grossíssimas. Mas um dia Cindy desapareceu e eu passei a usar óculos com lentes mais finas. Comecei a me interessar e sofrer por outras coisas. Deixei de ser criança, e Cindy, já desaparecida, continuou a subir em árvores, longe de mim e de seu próprio mundo.

Os gatos são criativos e observadores natos. Na verdade, nós é que somos bobos e distraídos. Desperdiçamos nossa atenção gratuitamente. Eles é que são os donos de nós, nos ensinam a arte de reis e rainhas. Pulam de grandes alturas, não fazem drama e surpreendem quando menos se espera. Silenciosamente, os gatos querem domar nossos impulsos e arbitrariedades.

No fim do dia, eles sabem que a vida é um ciclo — cedo ou tarde os problemas são resolvidos e o amor há de estar presente. O amor que se perde num labirinto de regras, esquinas, costumes.

Os gatos.

Quando eu era criança, imaginava ser Jesus Cristo. Eu me sentia especial. Mas aí o tempo passou e me transformei em outra coisa. Por desilusão fatídica da realidade, me vi longe da imagem de Cristo. Eu possuía um rosto só meu e do qual ninguém jamais deveria se apropriar. Mas nos meus sonhos roubei o misticismo do olhar felino. É um olhar que me aprova secretamente. Eu só me sinto aceito quando os meus olhos cruzam com os olhos de um gato por mais de dez segundos. Eis o nosso momento.

Os gatos são destemidos na ignorância que é forçar compreensão onde as sensações precisam ser vastas. 1+1 não significa nada na mente dos gatos. 1+1 somos nós em busca do amor incessante, amor que desespera, que desestrutura nosso mármore vazio, repleto de rachaduras. 1+1 é o clichê que os gatos ignoram e o clichê que os autores babacas insistem em perpetuar.

Amar os gatos não é clichê, mas escrever sobre gatos é o cúmulo do clichê. Ao escrever sobre gatos, eu decodifico uma imitação fajuta de Clarice Lispector quando ela escreveu o sublime O ovo e a galinha. Ou quando ela escreveu uma crônica sobre Brasília. Ninguém consegue se aproximar dela. Mas ela se aproximou profundamente de poucos e raros de nós.

Gatos deitam sobre carros estacionados como se ali fossem tronos. Tudo é alvo do olhar de águia que eles lançam como flechas certeiras. Meu gato não me ama tanto quanto eu o amo, assim como os amores despedaçados passados, ou os resquícios dos amores despedaçados passados.

Nós somos as maçãs, os olhos dos gatos são as flechas. Tenho um gato que já caiu duas vezes do quarto andar. Na segunda queda ele ficou doente, mas logo se recuperou. Senti a culpa dos pais distraídos, e desde então fico atento — não quero ter a culpa nas mãos. Eu o abraço e observamos as pessoas caminhando, os ciclistas, os pássaros, a chuva que cai. Quando eu o eternizo com os meus beijos, sinto enorme alegria e os problemas tomam uma proporção mais leve. Não consigo abraçá-lo sem antes enchê-lo de apertos e afagos. Às vezes, ele gosta, noutras, ele se sente sufocado, e sai correndo, pois assim como nós, eles veneram a liberdade.

Acredito que virginianos amam os gatos com maior exagero. Amar os gatos é amar o universo, é querer bem ao próximo, é abrir possibilidades de amor aos cachorros, peixes, passarinhos, tartarugas, coelhos, galinhas, bois, vacas — e até aos outros seres humanos.

Não consigo imaginar o mundo sem gatos. O que seria de mim sem o gato? Ou da eterna desconfiança do que vem após a morte? Perdi um amigo que amava gatos. Sinto muita falta dele. Era alguém especial, tímido, cheio de senso de humor, mas dono de uma realidade trágica. Ele era enigmático como os gatos, um irmão que eu abraçava e que ouvia pacientemente as minhas neuroses.

O que seria da civilização egípcia sem os gatos que eles tanto veneravam? Dizem que os egípcios costumavam raspar as próprias sobrancelhas quando seus gatos de estimação morriam, um sinal de luto.

As crianças gostam dos gatos e os gatos gostam das crianças, mas é um gostar discreto, nem todo mundo percebe. Os gatos precisam do homem, o homem precisa dos gatos. Acredito que os deuses do universo possuem ou já possuíram um gato. Os gatos são felizes quando dormem sobre os nossos livros. Se o livro é de capa dura, melhor ainda. Eles também amam dormir sobre nossos sapatos e chinelos. Eles sentem o nosso cheiro e isso é uma forma de manterem contato conosco, por mais que não notemos.

Mas eu me pergunto se no mundo há os que odeiam os gatos, assim como existem pessoas que nos atormentam a vida. Elas estão por todos os lados e em todas as esquinas, infestando tudo como baratas. Quando elas dormem, sofrem. Ninguém consegue ser feliz no planeta irradiando ódio. Ódio é o mais puro inferno.

Eu poderia falar por horas sobre os gatos e o meu amor por eles, mas não tenho tempo. A rotina exige de mim hora marcada. Em outra encarnação eu gostaria de ter nascido gato. Um gato amarelo e bem gordo. Um gato feliz numa realidade sem antipatia e segregação. Ser um gato é mostrar os dentes e miar com todas as forças contra a sordidez do mundo. Portanto, o gato também é você, o gato também sou eu. Lambemos nossas próprias patas e esperamos, sonolentos, o dia de amanhã. Lambemos nossas próprias feridas, mas diferentemente deles, não somos sinceros.

Não somos sinceros.

Antônio LaCarne é cearense, autor de Salão Chinês (Ed. Patuá, 2014), Todos os poemas são loucos (Selo Gueto Editorial, 2017) e Exercícios de Fixação (AR Publisher, 2018). Participou das antologias A polêmica vida do amor (Ed. Oito e meio, 2011), A nossos pés (Ed. 7Letras, 2017), Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017) e Rotatórias (Galeria Sem Título Arte, 2018). Alguns de seus poemas já foram traduzidos em publicações na Colômbia e na Grécia.