shirley e as batatas, de Leonardo Valente

A batata estava assando. Com o olho esquerdo inchado e roxo, Shirley colocou uma batata, daquelas bem grandes, tipo as de loja de shopping, no forno. Era para o pai. Cozinhou em água e sal, tirou um tampo com a faca, acrescentou azeite, alecrim e outro temperinho especial seu que guardara, e botou para assar em um pirex baratinho de vidro fumê. O pai mandou. O pai estava com fome. O pai havia lhe dado o soco no olho. Shirley obedeceu. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

Shirley levou o soco porque foi votar de vermelho, era dia de eleição para presidente. O pai era verde e amarelo. “Viado vagabundo! Tem que levar porrada, tem que morrer, seu filho de puta!”, gritou o pai assim que Shirley chegou. Shirley na carteira ainda era Adolfo, mas operou escondida aos 21 anos pelo SUS, com a ajuda de uma amiga médica. Depois disso, não conseguiu mais emprego e não queria se prostituir. Virou empregada semiescrava do pai pedreiro morador de meia água com parede no emboço em São Gonçalo e que nunca teve dinheiro para pagar uma diarista. Depois do soco, o pai bêbado e furioso gritou “agora vai fazer o almoço, caralho, estou com fome!”. Shirley obedeceu. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

Shirley perdeu a mãe quando nasceu, e o irmão mais velho foi morar nos Estados Unidos há cinco anos e nunca mais deu notícia, dizem que também virou pedreiro. Fazia bico de dia como faxineira em casa de semi-madame em rua melhorzinha do seu bairro muito pobre. À noite, cursava escondido Serviço Social na UERJ, viado não podia estudar segundo o pai, e queria se formar aos 26, ano que vem. O pai não sabia o que era Serviço Social, não sabia nem que o viado tinha terminado o Ensino Médio. O pai tinha certeza de que Shirley se prostituía porque chegava tarde todo dia em casa. O pai comeu Shirley à força por três vezes no último mês e pegou todo o dinheiro da carteira dela na noite anterior à eleição. Shirley não reclamou. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

A batata estava assando. O pai se levantou da poltrona velha de veludo vermelho carcomida pelo tempo e caminhou da sala até a cozinha, uma grudada na outra, com o peito estufado e a empáfia de quem se achava rei daquele monte de tijolos quase expostos e daquele chão mal cimentado, abaixo do nível do riacho vala negra que passava pelos fundos e que enchia a casa de esgoto de tempos em tempos. Caminhou de camiseta branca que ressaltava sua barriga feito bola de futebol só que um pouco maior, e mostrava os pelos do peito meio pretos meio brancos, com gingado malandro e com braços soltos, cabeça um tanto quanto caída de molecagem para a direita, olhar de canalha daqueles olhos já enrugados mas que insistiam em ser de garotão e sorriso de pecado genuíno, de pecado digno do inferno. Caminhou indiferente à goteira insistente do teto de laje infiltrada por causa da falta de telha, goteira entre a sala e a cozinha que formava uma cortininha divisória entre os dois cômodos sem divisão, sem fronteira. Shirley tremia por dentro de frente para a pia, encostada pelo abdômen lavando copo de geleia com marca de café e faca lambuzada de margarina, mas ela só fez o café e não tomou, saiu cedo para votar e sem comer. Tremia discreta de costas para a sala e de frente para a pia pequena e tosca, de mármore do mais barato catado em demolição ali perto, com cano vagabundo de PVC à mostra por baixo que ligava a tubulação ao riacho vala negra, porque água até chegava de vez em quando, uma vez por semana quando muito, mas esgoto não tinha. Olhar compenetrado na tarefa de limpar a mancha de café do copo e de tirar a margarina da faca com o dedo de detergente que ainda tinha na garrafa de plástico, quando a mão direita e suja daquele homem sujo pegou em cheio a sua bunda, apertou com vontade e mistura de raiva, desdém e tesão aquelas carnes saturadas de injeção de silicone líquido, mais perigoso, mais barato e mais fácil de aplicar. “Está pronta esta merda, viado comunista filho da puta?”, urrou o macho alfa cidadão de bem, eleitor de candidato cristão e defensor da família. “Ainda não, está quase”, respondeu Shirley, sem se virar, sem encarar, trêmula e indefesa, com o olho esquerdo dolorido e lacrimejante, o direito também, mesmo sem o soco. “Tira essa merda”, gritou o hétero convicto e que foi dispensado do Exército por ser magro demais quando tinha dezoito anos, mas que venerava o capitão candidato, ao rasgar a blusa vermelha dela de alto a baixo, a começar pela gola. Rasgo que pareceu arrancar o pescoço de tão violento, blusa baratinha e de malha fina que comprou em uma loja de departamentos de um shopping em Alcântara com o dinheiro da faxina, rasgo que a deixou de costas morenas desnudas, com o sutiã à mostra, também baratinho e já desbotado de tanto lavar com sabão ruim, desbotado que não permitia ver a cor original, mas que um dia também fora vermelho. Rasgou, deu as costas e voltou da mesma forma em que foi, com o mesmo jeito patife, para a poltrona carcomida, único móvel da sala além da estante de aglomerado com três bibelôs cafonas e da TV de 29 polegadas com antena interna e que só pegava as emissoras que defendiam com vigor o verde e amarelo. Shirley chorou para dentro, mas continuou a fazer o que estava fazendo e não reclamou. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

O pai não sabia, mas Shirley era mais verde e mais amarelo de que ele, aquelas cores eram mais suas do que dele, mas ele não deixava, as roubara dela, como roubava o dinheiro da carteira. O pai fazia a vez de bom homem com o pastor nos cultos de sexta na pentecostal da esquina de casa. Shirley não podia entrar na igreja, mas ajudava, sem receber um tostão, crianças em um hospital de câncer no Rio uma vez por semana, porque amava o que fazia e porque precisava de horas complementares e de estágio para se formar. O pai pagava prostitutas quando dava, com o dinheiro do viado ou com o trocado dos bicos que fazia, mas Shirley ainda sonhava em se casar e morar em Niterói, ter dois filhos e trabalhar na profissão que escolheu. O pastor disse para o pai que vermelho era coisa do diabo, de comunista, e que comunista e diabo eram a mesma coisa, e que viado, comunista e diabo também eram a mesma coisa. Disse ainda que o verde e o amarelo iriam acertar as coisas, dar um jeito naquilo tudo, resolver a situação, e que com a situação resolvida, diabo preso no inferno, o dinheiro chegaria, o dinheiro só não vinha porque o diabo não permitia. Quem era do vermelho, insistia o pastor, tinha que aprender levando surra e cano de revolver na goela. O pai gostava do que ouvia, mas como não tinha ainda dinheiro para comprar o revólver com cano para enfiar na goela, dava a surra e enfiava outro cano na goela de cima e na goela de baixo dela, achava justo, tinha o devido respaldo, era coisa do pastor, não do diabo, diabo era o viado. Shirley não sabia de quem tinha mais medo, do pastor ou do pai. Do diabo tinha menos, esse nunca incomodou. O pastor também a molestou meia dúzia de vezes em sessões de exorcismo e descarrego, em que ficava amarrada e sem roupa nos fundos da igreja. O pai sabia e aprovava, o pastor podia, a porra do diabo é que não saía dela, então ele repetia, e ela aceitava, nunca reclamou. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

A batata estava assando. Shirley se curvou e quase dobrou com o rasgo violento, deu para ver os contornos das vértebras que sustentavam o corpo franzino, ossinhos frágeis forrados com peles finas e carnes magras; com os braços fez um x instintivo sobre os seios pequenos para protegê-los, braços ainda molhados, um pouco engordurados e com cheiro de detergente. Caminhou cabisbaixa até o minúsculo quartinho também grudado na sala, tudo era grudado nela, onde tinha um armário de duas portas em que guardava sua meia dúzia de mudas de roupa. Quartinho em que cabia o armário, um colchonete forrado com lençol velho e ela. Caminhou ligeira e curvada, submissa e leve nos passos para não chamar a atenção, para não parecer ousadia ou descontentamento, para não exalar afronta. Fechou delicadamente a porta que não fechava direito, empenada porque o pai nada certo fazia, para escolher outra roupa. Olhou no espelho da parede o estrago, que a blusinha vermelha só serviria para pano de chão dali por diante, mas Shirley não reclamou. Shirley sempre obedecia. Shirley tinha medo.

Shirley morria de medo também de andar por sua rua e pelo bairro, a vizinhança toda era verde e amarela por causa do pastor, e o vermelho do diabo reluzia nela mesmo vestida de branco. Foi muita coragem e ousadia ter ido votar de vermelho e com adesivo, certamente estava jurada de surra a pedido do pastor, com certeza o pai aprovaria a medida. O homem de Deus falava e todo mundo obedecia. Parece que tinha um homem de Deus acima daquele, de outra cidade, que falava para aquele do bairro obedecer, e outro ainda acima, que tinha contato direto, não com Deus, mas com o verde e amarelo. Ninguém ali entendia, mas Shirley era vermelho porque sabia quem era e de onde vinha, ninguém ali nada sabia, nem como gerenciar a própria vida, eram rebanho e apenas isso, uns mais, outros menos desgarrados, dentro do limite elástico e convenientemente estabelecido, mas todos rebanho.

A batata estava assando. “Essa porra de comida não está pronta, caralho?” gritou o pai sentado na poltrona de veludo vermelho carcomida, grito de autoridade e de imposição de urgência. Shirley abriu delicadamente a porta do quartinho, mas dessa vez não saiu curvada. De salto alto e rubro, vestido vermelho sangue bem acetinado, o único que tinha e que comprou para um aniversário, e um chapéu vermelho escuro bem antigo e empoeirado, que foi da mãe que nunca conheceu, mas que guardou com zelo por anos; caminhou com altivez, pela primeira vez com nariz em ângulo reto os poucos metros até a cozinha quase cravada na sala, passos com barulho de gente que àquela altura se achava gente. Com uma gaze presa por esparadrapo no olho esquerdo, feito um tapa olho, chapéu levemente caído para o mesmo lado para fazer sombra, desfilou, não andou.

“Deve estar locou, esse filho da puta”, pensou o pai ao acompanhar incrédulo a cena. Shirley se aproximou do forno, abriu e viu que a batata ainda não estava completamente assada, mas a retirou assim mesmo. Colocou-a com prazer e semblante de leveza no prato branco do pai, como quem preparava a refeição de um filho ou de um marido querido, com um prazer que poucas vezes tivera; salpicou mais uma vez o temperinho especial que preparara, complementou com três colheres de arroz do dia anterior que havia deixado no fogão, domingo não tinha carne nem frango, e levou para a sala. Entregou com sorriso escorpiano o almoço ao pai que, esfomeado e sem nove horas, começou a devorá-lo feito um porco, sem pensar, sem sentir. Pouco mais de um minuto depois daquela cena grotesca, daquela alimentação animalesca, veio um engasgo repentino seguido de violenta quentura no rosto e a pergunta:

— O que você colocou nessa comida?

Shirley não reclamou da pergunta, Shirley sempre obedecia, mas Shirley agora não tinha medo. O pai não sabia, mas Shirley também gostava de idiomas, aprendera francês escondida e sozinha, achava glamouroso. Só gente estúpida pensava que vermelho não aprendia. Não era fluente ainda, mas conseguia se comunicar. Resolveu, então, mostrar que sabia e responder no idioma que mais gostava de falar, com o ar blasé, o rosto inclinado para o alto, o olhar desviado daquele ser abjeto e a mão direita sem cheiro de detergente, suavemente encostada no queixo:

Venin!

O pai não entendeu, mas também não precisava. O prato caiu, a vista escureceu, o coração parou de bater e ele não tinha mais nada a compreender, nada que pudesse fazer. A batata assara finalmente.

Leonardo Valente é escritor, jornalista e professor universitário, diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Em ficção, tem um romance publicado, Charlotte Tábua Rasa (2016), e o livro de contos Apoteose (Editora Mondrongo, 2018), obra finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2018. Entre seus originais inéditos destacam-se A procissão, vencedor do Prêmio José de Alencar 2017, e O beijo da Pombagira, romance finalista do Prêmio Rio de Literatura 2016.