seis poemas do livro ‘Erosão’, de Gisela Casimiro

02 gisela_caparaízes

Tens a altura das raízes
que prendem a terra ao seu eixo.

cicatrizes

Nada as fará desaparecer
por isso chora o que quiseres
sobre as tuas cicatrizes.

Elas limitam a tua invisibilidade
por isso escreve o que puderes
sobre as tuas cicatrizes.

o meu corpo

Este é o meu corpo,
mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.

o poema é um campo de batalha

O poema é um campo de batalha, é um corvo. É a senhora que pede esmola sentada à beira das escadas rolantes na estação de comboios e que eu ignoro de cada vez que por ela passo. O poema é a nobreza que essa senhora terá a mais do que eu, é a esmola pura que eu não mereço, sequer, pedir-lhe. O poema é a árvore do cimo da qual eu aprendo que o meu coração tem fundo. Em algumas manhãs, talvez por os anjos se demorarem mais à minha volta, vejo-a da janela do meu quarto e sei: o poema é este comover contínuo. O poema é o caminho que ainda me falta percorrer para o amor que me foi destinado e que se apresenta sob a forma de imagens esbatidas, difusas de quem sei que espera por mim nalgum país distante e que se distingue do que eu habito agora por não bastar um abrir ou fechar de olhos para lá chegar. O poema é o verbo salvar. O poema é a criança que no metro toca acordeão com um cachorro ao ombro, é um quadro. É o pé da minha avó, amputado, é uma nuvem. O poema é o meu silêncio para com o mundo. O poema é como sei que Deus é o ser mais solitário do Universo; é a minha oração, a minha forma desajeitada de fazer-lhe companhia.

mantenha a porta fechada

Mantenha a porta fechada, disseram,
mas a nossa segurança acabou aqui.
Ficou o lixo após a feira.
Ficou o descampado.
Ficou o nojo após o atentado.
E toda a roupa branca nos estendais
me parece manchada.
Um dia a chuva vai voltar,
mas flores de plástico
não precisam de ser regadas.

quando for grande

Quando for grande quero ser polícia
para bater nos pais de outros meninos
em frente aos outros meninos.

O meu pai sempre me disse:
cuidado a quem dás bastonadas.
Nunca dês bastonadas a um preto
senão vão achar que és racista.
Se deres bastonadas a um branco
estarás apenas a ser polícia.

Ainda bem que não somos pretos.
Imaginem se fôssemos pretos.
Já não podia ser polícia.

| poemas do livro Erosão (Editora Urutau, 2018). |

Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau em 1984. Estudou Línguas, Literaturas e Culturas. Participou como poeta convidada no International Young Writers Meeting 2017, na Turquia. Tem textos publicados em português e em turco. É cronista no jornal Hoje Macau, e publicou seu primeiro livro de poesia em 2018 pela editora brasileira Urutau. Faz teatro e fotografia. Vive em Portugal. Site: http://giselacasimiro.tumblr.com/