quatro poemas de Ricardo Silvestrin

paisagem nº 3

ainda não é noite
mas o sol já se foi
o canto esparso dos pássaros
reivindica o último azul
a célula fotoelétrica na beira da casa
os postes ao longe ao longo da rua
acendem ao comando da primeira estrela

logo o mar reflete a lua
deserto da agitação dos banhistas
ensimesmado, mar calmo, profundo
faz seu acerto de contas, de conchas
de ondas e ondas e espuma

um trilho de prata entre as vagas
sobre ele caminha Iemanjá
mas vai tão pequena
de manto azul noite
que nenhum telescópio consegue enxergar

só o pescador que lançou sua rede
o boto, a enguia
e mesmo a estrela do mar (estrela-guia)
vão dizer — salve, dona das águas,
__________salve, nossa rainha!

s/título

mais um passarinho
que eu não conhecia
canta no poste
e quase digo:
bom dia

o rabo-de-palha
pousa ao seu lado
e faz coro
esse é velho conhecido
se não é o mesmo
é muito parecido

chega um de peito amarelo
com canto estridente
um canto-martelo
no ouvido da gente

ficam os três
por segundos
cantando
como não subo
saem voando

s/título

dois ritmos em disputa
o mar e meu pensamento
o mar maior
logo vence a luta
e me sento lento lendo

no imenso silêncio
que se abre por dentro
o canto do pássaro
o canto do vento
o tempo desacelerando
momento a momento

a Terra é redonda, comprovo
há céu por todo lado
tudo termina e começa de novo
na velocidade da onda

pego a estrada
e volto à metrópole
(depois de oito dias)
eu
que de mais nada precisava
além de conchas e quilhas
estou outra vez cheio
de quinquilharias

quando um mar de afazeres
invadir a hora pequena
trouxe na memória uma cena
pra acalmar minha ira:
deixo a onda passar
enterrado na areia
como vi fazer
a tatuíra

bate e volta

1 (09:50/11:30)

entramos na cidade pelo mar
lá do alto eu via
a faixa de areia
o planisfério vivo
ruas riscadas e casas
até que os edifícios se erguiam
mas não roçavam nossas asas

viemos do oceano
das montanhas
vagamos entres nuvens fantasmas

com olhos fartos de azul
descemos do céu
o que, constatamos,
não é privilégio de deus

2 (20:50/22:30)

quero levar estas jóias para minha esposa
imenso porta-jóias luzindo
contra o céu escuro
veja, Thomas Edson, aqui de cima
com quantas lâmpadas se faz uma cidade
com quantos desconhecidos se faz uma nação
com quantas estrelas se faz o infinito

e com uma gota de sol se acende uma lua

veja, Santos Dumont, o passageiro ao meu lado
adormece coma biografia de Steve Jobs no colo
e nem vai lembrar de você
quando estivermos no solo

| poemas do livro Metal (Editora Artes & Ofícios, 2013). |

Ricardo Silvestrin é autor de dez livros de poesia, um livro de contos, um romance e oito livros de poesia infantis. É músico e lançou o EP Duk7. Também integra a banda os poETs. É formado em Letras pela UFRGS. Site: www.ricardosilvestrin.com.br