cinco poemas de José Pascoal

os amigos platónicos

Os amigos não servem para as ocasiões.
Os amigos não servem.
Os amigos mandam.

Mandam flores.
Mandam recados.
Mandam com mão leve.
Educados.

Grande coisa, a amizade
E a liberdade
De (não) ter amigos
De verdade.

dia de trabalho na capital

Em ruas de Lisboa
De que não sei o nome
Passam-se coisas muito estranhas.

Voam jornais velhos, facas e alguidares.
Passam, mesmo, camelos
Pelo buraco da agulha.

E vem gente de muito lugar
E muito cedo
Nos comboios do Rossio e de Santa Apolónia.

Voam jornais velhos, facas e alguidares.
Passam, mesmo, aves
Como no soneto de Sá de Miranda.

Que estranhas coisas se passam em Lisboa.

dois rapazes

Dois rapazes discutem Parménides
Em plena livraria.
Pura perda de tempo.
Descobrirão mais tarde.

Ao mesmo tempo, manifestam o desejo
De ler Santo Agostinho
No original.
Não lhes faz mal.

Também já fui de bicicleta
Aos Alpes do pensamento.

a pedra no sapato

Se tens a pedra no sapato,
Não chores o leite derramado,
Olha bem o dente a cavalo dado,
Não te percas no mato.

Isto, em sentido lato,
Com música de fado,
Letra de encapuzado
E paciência de gato.

Se não tens, deita-te a correr
Estrada fora,
Feito pedra rolante.

Pois, chegarás a ver,
Perto da aurora,
Os pés de barro dum gigante.

embora as folhas caiam

Embora as folhas caiam,
Os pássaros do Outono voam
Em círculos que anunciam
A chegada do Inverno.

Ao longo do caminho,
Espalho as minhas pedras,
Escolho os meus motivos,
Espero por melhores dias.

A cada passo, encontro
Uma flor esquecida
Pela voragem do Verão.

A cada passo, invoco
Da tua face escondida
O nome em vão.

José Pascoal, Portugal, Torres Vedras, 1953. Bibliografia poética activa: Sob Este Título, 2017, Antídotos, 2018, Excertos Incertos, 2018, todos publicados pela Editorial Minerva, Lisboa. Inéditos nas revistas digitais 7faces e Triplov — site dedicado a Ernesto de Sousa. Mantém o blogue Gazeta de Poesia Inédita [link]. Membro da Associação Portuguesa de Escritores.