faz sol, mas eu grito
Para Thiago de Mello
I
fartas horas inúteis
em que tragédias são recicladas
e se moldam por entre sombras e gestos desprezíveis
molduras da tarde disforme
ela diz:
“que tempo estranho…”
Estendo as mãos ao vento
algumas gotas ácidas corroem o meu desprezo
Reinvento uns versos esquecidos e ancoro tantas embarcações
em lugar nenhum
Enquanto a nova empresa americana ergue suas cercas
Modulo o tom de voz para não gritar
Mas antes pudesse gritar.
II
ruas imóveis sangram
como essa lua vermelha
que escorre
entre os corpos desmedidos
estranhas estruturas de ossos
que sustentam ossos
aguda solidão
d’água cavando
o sólido chão
intacta simetria
de cada grito
moldado ao sol.
III
quartos, cômodos
corredores em espirais
bocas automatizam
cruas faces/membranas
em cruzes
sombras esquálidas
de meninos esquecidos
nos porões
frios
sem vista para o mar.
poema de cinza chumbo
I
O pai ousou gritar nos dias cinzas de chumbo
A mãe rodava panfletos num velho mimeógrafo estéril
Nada entendíamos
Cantávamos tristes canções entre os ciprestes e as sombras.
II
Os mortos insepultos são partes da paisagem
Estão ali nas escadas
Emparedados naquele mar
Seus gritos tangem o fosso — precipícios
enferrujados elevadores do centro,
desvalidas memórias amputadas.
III
Na vala comum desses dias — ossos de um país moribundo
Rescaldos de versos enlameados
No chão que é de poucos
No mausoléu de granito o ditador com honras apodrece
Comunga avenidas e praças de desatada sangria
IV
O pai tecia longos poemas sobre a revolução
A mãe espreitava as frestas do fim do mundo
Nada entendíamos
Dormíamos entre as lápides quebradas da tarde.
antifábula n. 1
Cavas com as mãos
úmidas pedras do aquário
Limbos profundos onde peixes se encantam
com suas próprias sombras
Cores escorrem neutras entre os dedos
Não verificas o precipício da tarde guardada.
antifábula n. 2
Alguns rios gritam descendem
duas verticais penas invisíveis
Águas furtas/mudas formas
Olhos estrangeiros postados
num leito vazio
de mortos que acenam destros
disformes aguapés de abismos
Da margem esquerda
réstias de limbo traduzem
O cão velho que sangra cinza à beira
Do nada ao centro,
na profundidade da tarde extinta
Emaranhadas vozes,
palavras despidas de silêncios e silêncio.
| poemas do livro Faz sol mas eu grito (Editora Patuá, 2018). |
Leandro Rodrigues (1976) nasceu em Osasco, SP. É poeta e professor de Literatura. Lançou em 2016 o seu primeiro livro: Aprendizagem cinza (Editora Patuá). Participou em 2017 da antologia Hiperconexões 3 (Editora Patuá). Em 2018 lançou seu segundo livro, Faz sol mas eu grito (Editora Patuá), uma homenagem à poesia de Thiago de Mello. Publicou poemas em vários sites e revistas de literatura do Brasil, Portugal, Espanha e Estados Unidos.