hildegard, de Cinthia Kriemler

Ela sorri. E só isso já é um espanto. Faz tempo que ninguém a vê assim. Antes, os olhos sempre mortos, as sobrancelhas desistentes, a boca inerte. E de repente esse riso que ninguém sabe de onde vem. Espantoso, intenso. Como um deslumbramento.

A neve, a neve!, ela diz com excitação. Os dedos trêmulos apontam para a janela, acompanhados de mais um sorriso. Os olhos embaçados pelos anos estão vivos de novo, azuis como águas-marinhas. Eu queria estar lá fora na neve, ela continua. A mão enrugada se ergue e tenta traçar alguma coisa na vidraça embaçada. Mas desiste. Ela resmunga.

Eu fazia bonecos de neve muito bonitos. Você se lembra, Matilda?

A mulher jovem ao seu lado não se lembra. Nunca chegou a conhecer Matilda. Sabe apenas que era a irmã mais velha da mulher à sua frente, Hildegard Stern, sua avó, nascida Hildegard Adler, essa senhora de 83 anos que olha pela janela. A irmã que morreu no gueto de Theresienstadt, em 1942, como o restante da família. Assassinados.

Menos Hildegard. Uma dessas coisas inexplicáveis da guerra. Sobrevivente. Uma palavra tão cheia de significados. É isso que Hildegard é.

Depois da guerra, foi adotada por uma família judia que veio morar no Brasil. E cresceu com possibilidades. Todas as possibilidades que outras tantas crianças judias perderam nos trens da morte alemães, ou em fuzilamentos públicos, ou nas experiências daquele médico maldito.

A morte sempre vem, na sua busca cega e sedenta. Mas a existência, esse contraponto, também faz suas escolhas. Hildegard é uma escolha.

Isaac Stern. Esse o homem que se casou com ela. Um judeu que não conheceu a guerra. Que não sabia que a guerra é mais do que uma história passada. Foi feliz. Ela, Hildegard, a sobrevivente. Sem explosões de afeto ou de sonhos, mas foi feliz. Sobreviventes são criaturas discretas. Acomodou-se. Aceitou o jeito do marido, os negócios do marido, a casa comprada pelo marido, as joias dadas pelo marido, os silêncios do marido. Aceitou os filhos afastados pelo marido para colégios distantes, em países distantes. Só não se acomodou à saudade que sentia, e ainda sente, de Hanau, sua cidade natal. De onde foi arrancada pelos nazistas aos nove anos de idade. Última referência de um lugar legítimo em sua vida.

Todos os anos, pedia ao marido que a levasse à Alemanha. Ele ignorou cada pedido. Até morrer. Então, foi a vez dos filhos dizerem não.

Pra quê, mamãe? Deixa o passado pra lá! Por que você quer voltar a um lugar onde você sofreu tanto?

Porque queria. Porque ao contrário do que diziam aqueles rostos que ela começava a não reconhecer, ela tinha sido feliz naquela cidade distante em que havia pais e tios e amigos e Matilda. E neve.

Olha, Matilda, olha! Aqueles bonecos de neve estão muito feios, não estão?

A neta concorda com um aceno. Contendo-se para não dizer que lá fora só tem um parque cheio de sol onde crianças, pais e babás aproveitam uma manhã perfeita de verão. Contendo-se para não gritar Eu me chamo Erika, eu me chamo Erika, eu me chamo Erika!

Já faz um tempo que Hildegard tem delírios. No começo, Erika se assustou. Depois, chorou. Brigou com a idosa porque ela estava vendo coisas, falando de pessoas que não estavam mais vivas. Então, rendeu-se ao que disseram os médicos. Que a memória presente seria cada vez menor. Que a lembrança dos lugares, das coisas e das pessoas do passado seriam cada vez mais comuns. Até que não houvesse mais memória alguma. Uma nova avó. Feita de esquecimento, depressão, choro, saudade. E de quase nenhum riso.

Por isso, quando Hildegard a chama de Matilda, Erika responde.

É verdade, Hilde. Você faz bonecos de neve muito mais bonitos do que esses.

Porque não dá mais tempo de levar essa senhora frágil para Hanau. Para brincar com ela na neve de verdade. Porque nem faria diferença. Mas porque ainda é possível conceder a essa criança da guerra uma ilusão feliz neste dia raro de sorrisos lindos. Antes que o tempo se apague nela por inteiro.

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017. Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018); Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015. Semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos, 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). E do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017). Escreve para a Revista Samizdat. Tem textos publicados em Mallarmargens, Germina, Escritoras Suicidas, Diversos afins, Revista Philos, Revista InComunidade e na Gueto.